Anotações sobre o lugar da ética na economia comportamental
Parte da economia comportamental e experimental desenvolvida hoje em dia passa ao largo de considerações éticas. Este não tem sido sempre o caso, porém, como argumentarei aqui. Dentre os textos inspiradores desse programa de pesquisas encontra-se o ensaio em que Amartya Sen critica a microeconomia ortodoxa. O economista indiano, que em 1998 conquistou o prêmio Nobel, foi atrás de recuperar a origem ética da Economia. Localizou-a em clássicos como David Hume e Adam Smith, que integraram o grupo de filósofos morais britânicos do século XVIII.
O paradoxo da racionalidade
Em 1977 Amartya Sen publica pela primeira vez um artigo seminal, depois várias vezes reproduzido, intitulado “Rational fools: A critique of the behavioral foundations of economic theory”. Um dos eixos do artigo é o questionamento do privilégio concedido pela Economia à noção de um ser humano egoísta, cuja conduta é movida pelo auto interesse. O autor considera que a predominância absoluta dessa concepção empobreceu a teoria econômica, tolhendo-lhe a capacidade de enxergar as múltiplas formas de comportamento humano, no mercado e fora dele.
A teoria tradicional reduziu a racionalidade à consistência de escolha. É possível enxergar o indivíduo como alguém que persegue seu auto interesse a cada escolha que faz, qualquer que seja o objeto dessa escolha. Se o agente prefere x a y, sua preferência se revela no comportamento, e sua utilidade pessoal é uma representação numérica dessa preferência. As sucessivas escolhas do indivíduo são “racionais” se e somente se puderem ser atribuídas a uma ordenação de preferências com as quais sejam consistentes. Dessa maneira, diz A. Sen, nenhum agente escapa de maximizar sua própria utilidade.
Simpatia e Compromisso
Para contrapor-se a essa maneira de ver, nosso autor distingue atos movidos pela simpatia daqueles movidos por compromisso. Se a visão de uma pessoa sendo torturada penaliza o observador, tem-se uma manifestação de simpatia, em que a função de utilidade do observador inclui a preocupação com o bem-estar alheio. Em linguagem atual, seria um episódio de “externalidade”. Mas se a cena de tortura provoca no observador, além de pena, repulsa e a disposição de confrontar algo que lhe parece errado, é o caso de compromisso. Este implica escolhas contrapreferenciais, que, diferentemente daquelas movidas por simpatia, não podem ser acomodadas pela teoria econômica convencional.
Ora, é verdade que o compromisso, que introduz uma cunha entre preferência e escolha, não chega a ser um ingrediente importante da maioria dos atos de consumo privados. Deve-se então concluir que pode ser negligenciado na teoria? Sen acha que não, pois pode ser um componente estratégico da ação humana em contextos muito significativos, tais como aqueles que envolvem bens públicos e motivação para o trabalho. Provem do compromisso a disposição de colaborar para uma causa pública, ainda que isso implique o sacrifício de horas de lazer; independentemente de sua frequência, o comportamento daí resultante gera consequências positivas para o conjunto da sociedade.
Imperativos categóricos e metapreferências
O argumento de Sen evoca o conceito kantiano de imperativos categóricos. Na concepção de Kant, uma pessoa dotada de autonomia de vontade é governada por leis que impõe a si mesma, na forma de imperativos categóricos: “Faça x independentemente de seus desejos ou preferências pessoais”. Dissocia-se assim a escolha da racionalidade instrumental, pois determinados atos são bons em si mesmos, independentemente de suas consequências ou de estarem de acordo com as preferências do agente. A concepção ética aqui envolvida é a ética categórica, em contraposição à ética consequencialista do utilitarismo.
Inspirados por Sen, outros economistas e filósofos voltaram sua atenção para situações que envolvem pré-compromisso, em que o indivíduo restringe deliberadamente suas escolhas em nome de um objetivo maior. O caso de Ulisses, consagrado pela mitologia, ilustra bem esse mecanismo. Em sua epopeia, Ulisses pede para ser amarrado ao mastro e ter seus olhos vendados para não sucumbir ao canto das sereias e assim poder realizar sua grande meta, que é retornar à Grécia. (Gauthier 1996) O pré-compromisso tenta evitar a inconsistência entre o plano traçado pela pessoa e seu comportamento no ponto futuro.
Ao abrir espaço para circunstâncias em que o motivo que leva a pessoa a agir não pode ser reduzido ao denominador comum da utilidade, Amartya Sen (1982) recorre à noção de metapreferências ou meta-ordenação de preferências. Como postula Kant, os humanos não só preferem um curso particular de ação a outros, como são capazes de refletir sobre seus desejos imediatos e, vez por outra, contrariá-los. Essa capacidade de auto avaliação reflexiva permite que ajam não a partir das preferências que têm (preferências de primeira ordem), mas sim daquelas que gostariam de ter (metapreferências): “gosto de fumar, mas vou abandonar o fumo; gosto de esbanjar dinheiro, mas vou guardar para a aposentadoria; gostaria de continuar na poltrona ouvindo música, mas vou encabeçar um manifesto contra a tortura nas prisões. ”
É claro que as metapreferências nem sempre se impõem às preferências de primeira ordem, elas o fazem excepcionalmente. Mas essa desvantagem numérica não diminui sua importância na explicação da conduta. Aliás, o embate entre esses dois tipos de preferências pode tornar a conduta da pessoa errática no tempo, e isso tem implicações do ponto de vista econômico: alternância cíclica entre consumo desenfreado de carboidratos e matrículas em academias de ginástica, por exemplo.
A hipótese de metapreferências pode ser vista como um questionamento à noção simplista de um ser humano feito de um bloco só, sem conflitos internos, com uma única função de utilidade. Ela pressupõe um self múltiplo, e isso é crucial para discutir racionalidade, tomada de decisão e, por conseguinte, comportamento individual. (Elster 1987) Aliás, a ideia de que uma pessoa pode ser vista como (ou mesmo ser) um conjunto de “sub-selves” individuais, responsáveis por conflitos interpessoais não é, de modo algum, nova na psicologia. Sua pertinência tem sido constatada na pesquisa recente sobre comportamentos ligados ao autoengano e à fraqueza de vontade.
Metapreferências e os dois sistemas de pensamento
Vale notar também que a hipótese de metapreferências e de self múltiplo é comparável à noção dos dois sistemas em que se apoiam os economistas comportamentais. Como é sabido, Thaler e Sunstein (2008) distinguem dois sistemas de pensar, o automático e o reflexivo. Este último, mais deliberado, representa nosso sistema consciente, frequentemente incapaz de dominar o sistema automático, que é visceral e sujeito a vieses. Os autores também distinguem dois selves semiautônomos, o planejador, cuja visão alcança o futuro, e o “fazedor” míope. A batalha entre ambos está implícita na possibilidade de autocontrole e da resistência à tentação.
Outras linhas de pesquisa e outros autores no campo da economia comportamental enfrentam o desafio de combinar as dimensões positiva e normativa da Economia. Assim, experimentos clássicos tiveram como foco o comportamento altruísta, ao testar a disposição do sujeito de ceder parte de seu ganho para um parceiro anônimo. (Carter e Irons 1991, entre muitos outros) A explicação desse comportamento a partir do altruísmo foi aos poucos evoluindo na direção da hipótese de um código interno de justiça (fairness), que leva o sujeito a punir parceiros que não agem de forma recíproca, mesmo a custo de perdas pessoais (Gintis e outros 2005); e de normas socialmente definidas que impõem sanções à não-cooperação.
A ética na economia comportamental
Questões de natureza ética também estão presentes em discussões recentes na economia comportamental que tratam da arquitetura de escolha. O paternalismo libertário defendido por autores como Thaler e Sunstein (2008) recomenda que os formuladores de política criem mecanismos que possam dar um empurrãozinho (nudge) na direção da escolha socialmente (e muitas vezes também moralmente) preferível. Políticas com essa inspiração envolvem intervenções diretas e reorganização dos contextos em que as escolhas são feitas. A preocupação é ajudar pessoas e grupos a decidirem o que é melhor para si mesmos e/ou para a sociedade, sem que isso prejudique sua liberdade de escolha. É possível dispor as mercadorias nas prateleiras de supermercados de tal forma a estimular um consumo mais saudável; parques públicos podem ter avisos que inibam o comportamento predatório de seus frequentadores; embalagens podem conter informações sobre a qualidade nutricional do alimento; caixas organizadoras podem ajudar o paciente a lembrar de tomar sua medicação diária; contas de luz podem trazer informação sobre o consumo daquela unidade doméstica comparativamente ao de seus vizinhos; e assim por diante. As questões éticas envolvidas no delineamento de tais políticas são numerosas, desde a confiança que se pode depositar nas intenções e na competência do planejador até o conteúdo variável de imposição presente nos mecanismos envolvidos.
A mesma preocupação com a ética e a mesma disposição de superar o hiato entre economia positiva e normativa estão presentes nos experimentos de campo que têm sido desenvolvidos na economia do desenvolvimento (World Bank 2014). Ainda que as dimensões morais do comportamento humano não sejam seu objeto direto de estudo, seu pano de fundo é uma meta de natureza ética, que é a superação da pobreza.
Mais recentemente, a existência de comportamentos altruístas e prossociais passou a ser constatada também entre espécies animais. A pesquisa sobre primatas revelou a recorrência de comportamentos derivados de altruísmo recíproco. (Cronin 2012; Silk 2005) Primatas reconhecem seus parceiros como indivíduos e interagem com eles; mais ainda, eles monitoram e registram as respostas de seus parceiros, e isso os leva a ajustar seu comportamento subsequente. Entre os macacos, um padrão reiteradamente observado é o de um indivíduo que intervém para proteger os demais de seu grupo contra agressores externos, correndo o risco de se ferir na disputa. Há mesmo evidência empírica de um comportamento de punição de terceiros entre macacos rhesus.
A descoberta dessas regularidades e, mais recentemente, o avanço da pesquisa em neurociência, baseada no exame do funcionamento do cérebro, colocam sob suspeição a hipótese de que o altruísmo seria um traço exclusivamente humano. Indiretamente, portanto, questionam a noção de imperativos categóricos, e estimulam a reflexão sobre o significado da ética.
Para concluir, penso que a economia comportamental não precisa aderir à concepção ética de precursores como Amartya Sen, inspirados pelos ensinamentos de Kant. Mas questões de natureza ética são inevitavelmente afloradas pela pesquisa nessa área, o que significa que devem ser enfrentadas, e não escamoteadas. Os economistas devem ter em mente a questão dos valores, das normas e do sentido de comunidade no delineamento de suas pesquisas.
Referências Bibliográficas
Carter and Irons 1991. John H. Carter and Michael D. Irons, “Are economists different, and if so, why?” . Journal of Economic Perspectives, vol. 5, n.2, pp. 171-177.
Cronin 2012. Catherine A. Cronin, “Prosocial behaviour in animals: the influence of social relationships, communication and rewards”. Animal Behavior, n. 84, pp. 1085-1093
Elster 1987. Jon Elster (ed.), The multiple self . Press Syndicate of the University of Cambridge.
Gauthier 1996. David Gauthier, “Commitment and choice: an essay on the rationality of plans”, in: F. Farina, F. Hahn e S. Vanucci (eds.), Ethics, rationality and economic behavior. Clarendon Press.
Gintis e outros 2005. Herbert Gintis, Samuel Bowles, Robert Boyd e Ernst Fehr, “Moral sentiments and material interests: origins, evidence, and consequences”. in: H. Gintis, S. Bowles, R. Boyd e E. Fehr (eds), Moral sentiments and material interests. The foundations of cooperation in economic life. Cambridge, Mass.: The MIT Press.
Sen 1982. Amartya Sen, Choice, welfare and measurement. Oxford: Basis Blackwell.
Sen 1977. Amartya Sen, “Rational fools: a critique of the behavioral foundations of economic theory”. Philosophy and Public Affairs, vol. 6, n. 4, pp. 317-344.
Silk 2005. Joan B. Silk, “The evolution of cooperation in primate groups”. in: H. Gintis, S. Bowles, R. Boyd e E. Fehr (eds), Moral sentiments and material interests. The foundations of cooperation in economic life. Cambridge, Mass.: The MIT Press.
Thaler e Sunstein 2008. Richard H. Thaler e Cass R. Sunstein, Nudge. Improving decisions about health, wealth, and happiness. revised edition. Penguin Books.
World Bank 2015. World Development Report 2015. Mind, society and behavior. The World Bank.
Felipe Augusto de Araújo
Prof. Ana, excelente texto. Lembrei de um artigo recente de George Loewenstein e co-autores sobre considerações éticas de políticas de nudge. Eles fizeram diversos experimentos em que avisavam os participantes de que eles estavam usando um nudge, e em seguida davam oportunidade para os participantes mudarem de ideia. A discussão ética é bem interessante, e os resultados mostraram que os efeitos das políticas foi o mesmo tanto para os participantes que foram informados como para os que não foram. Eis um link para o texto: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2417383
Ana Maria Bianchi
Acho que ainda não tinha te agradecido, Felipe. Dei uma espiada no texto, é uma boa contribuição ao debate.
Felix Kessler
Nossa! Fizeste uma fantástica união entre os assuntos! Isso me lembrou algo que li recentemente dentro da área de neuro: A neuroética (neuroethics) – que estuda o comportamento do cérebro em decisões sobre “certo e errado”. Deixo também, assim como o Felipe, um link de um artigo (em PDF) bem básico para quem se interessar:
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CBwQFjAA&url=http%3A%2F%2Fjournal.frontiersin.org%2Farticle%2F10.3389%2Ffrym.2015.00002%2Fpdf&ei=6lmJVcbfCoa8ggTA1YXADw&usg=AFQjCNFLmSFkP_t05EKhPYMF0ouOKGP2-w&sig2=GAYmQbfrpDLpSeeRoxwq3Q&bvm=bv.96339352,d.eXY&cad=rja
Parabéns professora Ana!
ana maria bianchi
Felix, genial! Vou ler com cuidado. É muito importante que vcs, mais jovens, nos indiquem bibliografia atualizada. Com calma vamos lendo e nos inteirando do estado das artes no campo.
Maria Bernardete Guimaraes
Estou pensando em como escolhas racionais poderiam ajudar na Economia verde e em escolhas mais comprometidas com o meio ambiente. Afinal escolher produtos ecologicamente melhores depende do consumidor, assim como escolher saladas a frituras, escolher uma vida saudável a um infarte. Escolher um carro flex ou a etanol a um a gasolina.Escolhas.
Ana Maria Bianchi
Sim, é verdade. E uns pequenos nudges poderiam ajudar a pessoa a fazer essas opções, ou, pelo menos, incentivá-la a refletir sobre suas decisões, privilegiando escolhas mais saudáveis, melhores para o bem comum, éticas etc..