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Um dos traços mais marcantes da economia comportamental é sua dimensão aplicada. Conceitos como o de nudge[1] derivam diretamente da preocupação dos pesquisadores da área com a orientação de políticas que possam atingir objetivos socialmente relevantes. A própria caracterização da arquitetura de escolha[2], no livro seminal de Richard Thaler e Cass Sunstein (2008), sinaliza essa preocupação, que decorre do endosso da doutrina do paternalismo libertário[3]. O livro começa com a descrição do ambiente de uma cantina, onde uma nutricionista disposta a promover mudanças no padrão alimentar das crianças põe-se a pesquisar a melhor disposição dos alimentos nas gôndolas, com o objetivo de favorecer escolhas saudáveis.

A área da saúde tem sido beneficiada por esse traço distintivo da economia comportamental. É o que pretendo ilustrar neste artigo, a partir de alguns exemplos concretos: o estudo da dor, com o objetivo de distinguir a experiência de dor propriamente dita de sua lembrança; a elaboração de nudges de compromisso, graças aos quais as pessoas exercitam seu auto-controle e ajustam seu comportamento efetivo àquele que planejaram; e políticas públicas na área de saúde, como a de vacinação infantil e de prevenção de gravidez na adolescência.

A experiência da dor e a lembrança da dor

Daniel Kahneman dedica várias páginas de seu Thinking fast and slow (2011) ao relato de pesquisas experimentais realizadas com o objetivo de confrontar  a experiência da dor tal como é vivida pelos sujeitos (utilidade vivenciada)  com aquela da qual se recordam (utilidade lembrada).

Como é sabido, a dor que os pacientes de um procedimento médico qualquer reportam é uma das fortes razões para que eles se recusem a submeter-se novamente à experiência e, com isso, descontinuem o tratamento investigativo ou terapêutico. Em seus experimentos, Kahneman observou que a lembrança que o indivíduo guarda de vivências dolorosas influencia suas futuras escolhas, levando-o muitas vezes a interromper o tratamento recomendado pelo médico. O autor sugere que isso pode valer para uma série de procedimentos de saúde que envolvem dor, como é o caso de mamografias, tratamentos dentários e procedimentos de ressuscitação.

Redelmeier e Kahneman (1996) mediram em tempo real a dor vivenciada por pacientes de um grande hospital de Toronto (Canadá) submetidos a dois procedimentos médicos, colonoscopia e litotripsia. Os pacientes deveriam avaliar sua dor, numa escala de 0 a 10, a cada 60 segundos do procedimento. A medida obtida era em seguida comparada com a avaliação da dor total feita pelos mesmos pacientes após o término do procedimento. Essa segunda avaliação mostrou-se altamente correlacionada com dois momentos: o momento de maior intensidade da dor (seu pico) e os momentos finais do procedimento.

O principal resultado do experimento conduzido pelos autores é que a duração do procedimento não afetou a avaliação retrospectiva do paciente.  No grupo experimental, cujo procedimento prolongou-se por alguns minutos a mais, a dor lembrada foi menor do que a do grupo de controle, onde o procedimento foi interrompido no momento de pico da dor.

Que lição pode ser extraída dessa pesquisa para a prática médica? Fundamentalmente, que, se o objetivo é reduzir a lembrança da dor e, assim, aumentar a probabilidade de que o paciente concorde em submeter-se novamente ao procedimento, reduzir seu pico é mais importante do que encurtar sua duração. Outra conclusão importante é que, como o paciente é particularmente sensível aos momentos finais de sua vivência, um alívio gradual da dor, proporcionado pela extensão do procedimento no tempo, é preferível a um alívio abrupto.

Compromissos

O tabagismo é um severo problema de saúde pública. Ora, a economia comportamental ensina que as pessoas nem sempre fazem o que dizem querer fazer. Embora elas expressem preocupação com sua própria saúde, nem sempre agem de forma compatível, e incentivos adequados podem ajudá-las a agir segundo aquilo que declaram ser sua intenção.

Guiados por esses princípios, psicólogos e economistas comportamentais colheram evidências robustas de que a pressão dos pares é um fator importante para que as pessoas tomem decisões que consideram acertadas, mas que lhes causam alguma dor ou contrariam seus desejos imediatos.

Esse tem sido o foco de várias pesquisas experimentais. Bryan, Karlan e Nelson (2010) definem como mecanismo de compromisso um arranjo qualquer que estimula o indivíduo a implementar um plano de comportamento associado a conflitos intrapessoais, como aqueles que decorrem de falta de auto-controle. Esse tipo de mecanismo “ata as mãos” da pessoa em benefício de sua meta de longo prazo, criando um cenário no qual ela se torna capaz de resistir à tentação do momento.

Um experimento desse tipo no campo do tabagismo foi testado nas Filipinas (Giné, Karlan e Zinman 2010). Os sujeitos eram reunidos em grupos nos quais assumiam um compromisso coletivo com a meta de parar de fumar.  Eles depositavam em conta bancária uma certa quantia de dinheiro, correspondente àquilo que gastavam com a compra de cigarros. Essa quantia só poderia ser recuperada depois de seis meses, desde que a meta proposta tivesse sido atingida. A fiscalização dos pares era feita por meio de testes de urina para medir a presença de nicotina, realizados na presença de todo o grupo.  Ela era essencial para assegurar o cumprimento da meta e, portanto, a recuperação do dinheiro. Assim, além da pressão dos pares, a aversão à perda agia como um nudge poderoso para a manutenção do compromisso.

Experiências semelhantes foram testadas por Karlan e sua equipe em outros domínios relevantes para a saúde pessoal, como a perda de peso e a prática regular de exercícios físicos. Em todos eles a presença de compromissos coletivamente assumidos foi um fator crucial para o atingimento de metas.[4]

Políticas públicas

As descobertas da economia comportamental têm norteado a elaboração de políticas públicas de saúde em várias partes do mundo. Banerjee e co-autores (2010) relatam a experiência de um grande projeto de desenvolvimento implementado na zona rural do Rajasthan, na Índia, onde foram montados acampamentos destinados à vacinação infantil (Banerjee, Duflo, Glennerster e Kothari, 2010). Os autores constataram que a presença desses acampamentos, somada ao trabalho de assistentes sociais, que instruíam a população quanto à importância da vacinação infantil, melhoravam a adesão das famílias, mas eram insuficientes para garantir o sucesso do programa. Embora mais de 75% das famílias comparecessem à primeira etapa da vacinação, elas faltavam nas visitas subsequentes, a tal ponto que a imunização completa só atingia 20% das crianças.

O programa funcionou significativamente melhor para o grupo em que o trabalho dos assistentes sociais foi complementado por dois pequenos nudges: a distribuição de um pacote de lentilhas a cada vez que os pais traziam seus filhos para tomar vacina; e a doação de um prato de metal depois da quinta e última visita, quando a criança era considerada plenamente imunizada.  Não bastava, portanto, disponibilizar para as famílias serviços de saúde e ensinar-lhes as vantagens da adesão ao programa; nudges de baixo custo tiveram um papel complementar estratégico.

O segundo exemplo concreto de uma política bem sucedida está ligado à prevenção da gravidez na adolescência, que é um grave problema de saúde pública nos Estados Unidos. O estado da Carolina do Norte implantou um programa de prevenção inspirado no sucesso de experiências anteriores, intitulado “Dollar- a-day” (Brown, Saunders e Dick 1999).

O foco do programa foi (e continua a ser) a gravidez repetida entre adolescentes que já são mães. Esse era um fenômeno recorrente nos Estados Unidos, onde cerca de 17% das adolescentes que já eram mães tornavam a engravidar no ano seguinte ao do nascimento de seu primeiro filho. Em média, 60% das adolescentes que tinham seu primeiro filho antes dos 15 anos chegavam aos 19 anos com três filhos. Pesquisas anteriores haviam mostrado que não só essas adolescentes tinham mais filhos, e de idades mais próximas, comparativamente a outras mães, como rejeitavam mais a maternidade. Havia também entre elas uma incidência substancialmente maior de nascimentos prematuros.

A situação era particularmente grave na Carolina do Norte. Se essas adolescentes fossem mantidas mais tempo sem engravidar novamente, teriam maiores chances de completarem seus estudos de nível médio, planejarem suas carreiras profissionais e, ao mesmo tempo, cuidarem melhor de seu bebê.

O programa “Dollar- a-day”, implementado em Greensboro em 1990 por um grupo de enfermeiras, oferecia às adolescentes que já eram mães um dólar por dia em que não estivessem grávidas. Seu êxito pode ser medido pelo fato de que apenas 15% das 65 adolescentes atendidas pelo programa voltaram a engravidar antes dos 20 anos. Essa taxa de sucesso levou a Universidade da Carolina do Norte a incorporar permanentemente esse programa nos serviços prestados à comunidade (Brown, Saunders e Dick 1999).

Para concluir

Relatei aqui alguns exemplos de aplicação dos ensinamentos da economia comportamental à área da saúde.  O número dessas aplicações tem-se multiplicado nos últimos anos e sua abrangência vem aumentando de forma significativa.

Vale destacar que uma intervenção na área de saúde tem duas dimensões importantes. Primeiro, ela funciona como teste empírico de diferentes possibilidades de solução para um problema qualquer.  Pesquisas como a da dor, aqui resumida, decorrem do esforço de uma equipe de pesquisadores engajados em testar suas descobertas em diferentes contextos, para avaliar a robustez dos padrões observados. Bem sucedidos ou não, esses testes permitem avançar o conhecimento sobre questões críticas na área de saúde e a melhor maneira de enfrentá-las.

Em segundo lugar, intervenções inspiradas por noções da economia comportamental têm sido coroadas de êxito, conduzindo a um aumento do bem-estar individual e social. Decifrar a complexidade da dor contribui para o desenvolvimento de uma medicina mais preocupada com o bem-estar do paciente que é submetido a um diagnóstico, uma terapia ou um trabalho preventivo. Da mesma forma, medidas destinadas a combater o tabagismo, a obesidade,  prevenir a gravidez na adolescência e diminuir a resistência ao tratamento profilático de doenças ajudam as pessoas e a sociedade a garantir melhores condições de saúde.

Os esforços de aplicação da economia comportamental na área de saúde ainda podem ser considerados embrionários. Muito deve ainda ser testado e aprendido na prática. A direção dos esforços, porém, parece estar correta, o que torna importante divulgá-los entre os profissionais de saúde.


 

Referências

Banerjee, A. V., E. Duflo, R. Glennerster e D. Kothari, Improving immunisation coverage in rural India: clustered randomised controlled evaluation of immunisation campaigns with and without incentives. British Medical Journal, 340:c2220, 2010.

Brown, H. N., R. B. Saunders e M. J. Dick, Preventing secondary pregnancy in adolescents: a model program. Health Care for Women International 20: 5-15, 1999.

Bryan, G., D. Karlan e S. Nelson, Commitment Devices. Annual Review of Economics, 2: 671-698, 2010.

Giné, X., D. Karlan e J. Zinman, Put Your Money Where Your Butt Is: A Commitment Contract for Smoking Cessation. American Economic Journal: Applied Economics 2: 213-35, 2010.

Kahneman, D., Thinking fast and slow. Farrar, Straus and Giroux, 2011.

Redelmeier, D. A. e D. Kahneman, Patients’ memories of painful medical treatments: real-time and retrospective evaluations of two minimally invasive procedures. Pain 66(1):3-8, 1996.

Sunstein, C., Nudging: um guia muito breve. In: F. Ávila e A. M. Bianchi (orgs), Guia de economia comportamental e experimental. São Paulo. Disponível em www. economia comportamental.org, 2015.


[1] Entende-se por nudge um aspecto da arquitetura de escolha que influencia o comportamento das pessoas de um modo previsível, sem proibir nenhuma opção, nem alterar significativamente os incentivos econômicos.  Para uma explicação mais aprofundada, v. Sunstein (2015).

[2] O termo “arquitetura de escolha” refere-se ao desenho de diferentes maneiras pelas quais alternativas de escolhas são apresentadas ao agente, e o impacto que podem exercer em sua tomada de decisão.

[3] Tal como definido por Thaler e Sunstein, o paternalismo libertário busca instrumentos capazes de influenciar o comportamento das pessoas na direção de objetivos que tornem sua vida mais longa, mais saudável e melhor, sem, contudo, desrespeitar sua liberdade de escolha.

[4] O sucesso dessas experiências levou Karlan, juntamente com seus colegas da Universidade de Yale, Barry Nalebuff e Ian Ayres, a montar um domínio na internet voltado para ajudar as pessoas a realizarem suas metas e aspirações. Trata-se do Stickk.com, que desenvolve mecanismos de compromisso. Os interessados podem aderir a contratos de compromisso, em geral com penalidades em dinheiro e baseados em aversão à perda, para assegurar a concretização de suas metas.

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