Blog

Imagine que você entra na sua primeira aula de economia, e a professora diz: “Bem-vindos. Hoje, um de vocês irá ganhar dinheiro …”  No centro da sala de aula não tem mesas, nem cadeiras. Um espaço vazio. Mas logo esse espaço está cheio de alunos gritando alto “eu compro por 5”, “eu vendo por 8”. A sala tornara-se um mercado. Você e seus colegas fecharão negócios, anotarão lucros e prejuízos […]. Se isso acontecer, você terá acabado de entrar em uma aula em qual você aprenderá, através do estudo de seu próprio comportamento, do comportamento dos outros participantes, e de suas interações, sobre o funcionamento do mecanismo de mercado: oferta, demanda, preço, equilíbrio, bem-estar, eficiência econômica e sobre o impacto de controle de preços.

Esse cenário pode ser real. Cada vez mais professores de economia usam experimentos em sala de aula como instrumento de ensino e aprendizagem. Afinal, economia é uma ciência social que estuda o comportamento das pessoas. Ao participar em um experimento como esse, os alunos começam a compreender os princípios básicos da economia assim como um nadador aprende a nadar: nada melhor do que pular na piscina.

mercado

Gráfico 1 – O Mercado na Sala de Aula Fonte: Ygosse Battisti, 2015.

As Regras do Jogo de Mercado

O jogo que comecei a descrever no início desse texto é baseado em um dos experimentos de mercado de Vernon Smith, laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 2002. Para aplicar essa dinâmica, basta o professor trazer um baralho de cartas para sua sala de aula, tirando o rei, a dama, o valete e o coringa, e criar no meio da sala um espaço para o mercado. No início do jogo, todos(as) os(as) alunos(as) sentam de preferência em um grande círculo, deixando espaço no meio da sala para o mercado físico.O professor explica as regras do jogo: No início de cada rodada, cada participante no experimento receberá uma carta. Se você tirar uma carta vermelha, isto é, qualquer carta de Copas ou Ouros, você será um(a) vendedor(a). Isto é fácil de lembrar: V de vermelho → V de vendedor. Quem tirar uma carta preta – Espadas ou Paus – é comprador(a). Cada rodada cada participante receberá uma nova carta. Em princípio, o número em sua carta é informação privada. Não é preciso mostrar sua carta aos(às) outros(as) jogadores(as). Mesmo que isso não seja proibido, não é recomendado, pois revelar essa informação pode ser vantajoso para outros(as) jogadores(as).

Assim que todos(as) os(as) participantes receberem uma carta, a(o) professora(o) abrirá o mercado. Quem tirar uma carta vermelha tenta fazer uma venda. Não é preciso vender, mas se você conseguir vender a um preço maior do que o número em sua carta, a diferença é seu lucro. Por exemplo, se você tirou a carta 3 de Copas, e no mercado você consegue fechar uma venda por 10, seu lucro é 10 – 3 = 7. Quem tirar uma carta preta tenta fazer uma compra. Novamente, nada é obrigatório, mas se tirou, por exemplo, uma carta 7 de Espadas, e conseguir fechar uma compra pelo preço 5, seu lucro será de  7 – 5 = 2.  A cada rodada é possível fechar somente uma transação. Assim que dois participantes, um(a) vendedor(a) e um(a) comprador(a), fecharem um preço, os dois precisam procurar o(a) professor(a), que fica durante a rodada na frente da lousa. Os(as) alunos(as) devolvem suas cartas ao professor, e revelam o preço fechado. O professor anota esse preço na lousa, visível para todos(as) os(as) alunos(as) que ainda circulam no mercado. Em seguida, esses dois alunos retomam seus lugares nas cadeiras, saindo, portanto, do mercado, e anotam o resultado da rodada em suas respectivas planilhas. Cada vez mais duplas fecham preços no mercado, avisando o(a) professor(a) e esvaziando o mercado. Quando não sobra ninguém no mercado, a rodada finaliza. O(a) professor(a) volta a ter todas as cartas na mão, e pode iniciar uma nova rodada, embaralhando e distribuindo aleatoriamente as cartas entre os(as) participantes.

É importante jogar várias rodadas, pois com a repetição os(as) alunos(as) ganham a cada rodada mais informação sobre quais preços foram negociados na rodada anterior. Com isso, começa a haver transparência de preços e os preços negociados começam a convergir.  Quando eu jogo esse experimento com meus alunos(as), eu não informo a ninguém quantas rodadas serão jogadas. A convergência de preços costuma acontecer rapidamente, já na 3ª ou 4ª rodada. Se a turma for muito animada, faço uma rodada adicional, na qual mudo uma das regras, introduzindo, por exemplo, um controle de preços feito pelo “governo”, para ter mais matéria para discutir e analisar em seguida.  A primeira rodada leva normalmente um pouco mais de tempo, porque os alunos ainda estão se acostumando às regras do jogo. As rodadas seguintes são rápidas, e no total, esse experimento pode ser feito, com uma sala de 40 a 60 alunos, em menos de que 30 minutos. Eu realmente pago ao participante que obtiver mais lucros ao longo das rodadas o valor, em reais, da soma desses lucros. Isso me custa algo em torno de 10 ou 12 reais.

O Debriefing e as Descobertas de Como Funciona o Mercado

A aula não acaba quando o experimento chega ao fim. Ao contrário, é o momento que começa a atividade de analisar o comportamento dos indivíduos e sua interação e da descoberta própria do funcionamento do mercado competitivo. É o momento no qual também discutimos as premissas necessárias para que o mercado funcione bem, e fazemos o “teste de realidade” das lições do funcionamento de mercados competitivos.

A discussão começa com uma série de questões, que os(as) alunos(as) respondem livremente: (1) qual foi o preço de mercado? (2) qual o volume negociado? (3) qual preço a teoria econômica teria previsto nesse experimento? (4) em sua opinião, esse mercado era muito eficiente? Para a surpresa dos(as) alunos(as), tanto o preço de convergência no jogo como a quantidade de transações fechadas a cada rodada sempre são exatamente iguais ao que a teoria teria previsto. Para conversar sobre o grau de eficiência no mercado, avaliamos se teria sido possível alcançar na sala de aula mais lucros do que a soma dos lucros de todos os participantes a cada rodada. Outra surpresa ocorre ao ver que isso teria sido impossível. Definimos nesse momento o conceito de “Eficiência de Pareto”: a situação em que ninguém no jogo consegue melhorar seu lucro sem que isso resulte em uma perda de lucro para uma outra pessoa.

Em seguida, usamos os dados do experimento para traçar um esquema de oferta e de demanda, definir preço de reserva e preço natural, excedente do consumidor (comprador) e do produtor (vendedor). Discutimos quem, afinal das contas, determinou o preço. Não foram os vendedores, nem os compradores. Surge, então, a sensação de que foi o próprio mercado que determinou o preço de mercado com a repetição do jogo, como se tivesse a atuação de uma “mão invisível” no jogo. Em depoimento um aluno, que já tinha cursado antes um curso de economia, falou que após esse jogo ele “[…] finalmente entendeu o conceito da mão invisível de Adam Smith […]”.

Gráfico 2 – Experimento de Mercado: O Que a Teoria Econômica Teria Previsto? Fonte: Ygosse Battisti, 2015.

Discutimos, em seguida, perguntas como: (5) que tipo de bem foi negociado? (6) que tipo de informação era disponível para os participantes? (7) você caracteriza esse mercado como “bem organizado”? (8) quais incentivos os participantes tinham nesse mercado? (9) todos os participantes têm atuados de forma racional no jogo?  Será que é necessário que todos atuem de forma racional? Os alunos descobrem que na verdade nenhum bem foi negociado. Eles não estavam comprando e vendendo cartas: o bem negociado era um “bem hipotético”. Porém, os incentivos eram reais: quem ganhasse receberia dinheiro. Em outras palavras, houve um incentivo financeiro. Olhando para os retornos dos participantes em todas as rodadas, quase sempre alguém em uma das primeiras rodadas perde dinheiro. Discutimos que isso pode ser interpretado como comportamento irracional, sendo a “racionalidade” um conceito muito simples e prático no qual o jogador racional não toma decisões que resultarão em prejuízos financeiros.  Concluímos que não era preciso que todos os jogadores fossem 100% racionais para o mercado funcionar bem.

Ao jogar o experimento em salas grandes – 40 ou mais alunos – ninguém fica com uma impressão que o mercado era “bem organizado”. Logo, isso ajuda a relativizar o que economistas querem dizer com mercado “perfeitamente” competitivo. O mercado não é “perfeito”, no sentido de bem organizado, mas as condições de mercado são de tal forma, principalmente em relação ao acesso a informação, transparência de preço, e a não diferenciação do produto negociado, que a competição pode ser considerada “perfeita”.

A última lição importante que sai desse jogo é que a informação disponível a todos os jogadores não precisa ser “perfeita”, no sentido de todos saberem tudo, mas o que é realmente importante é que haja transparência referente aos preços já fechados no mercado (que, no jogo, há, pois o professor publica esses preços na lousa), e que os jogadores tenham informação simétrica: ninguém tem mais informação de que os demais jogadores. No jogo cada jogador tinha como informação privada o número de sua carta. Essa informação não era disponível aos demais jogadores. O que basta para o mercado funcionar bem não é acesso a 100% da informação, mas que cada um tenha acesso ao mesmo tipo de informação.

No final da atividade, os participantes não apenas entendem bem como funciona o mecanismo de mercado e a formação de preços em mercados competitivos, mas também entendem que as quatro premissas de mercados competitivos – os bens são homogêneos, todos os agentes são tomadores de preços, existe transparência de preços e informação simétrica, e existe livre entrada e saída de mercado – não são tão utópicas como alguns talvez imaginavam antes de entrar na aula experimental, mas podem estar presentes no mundo real sob condições relativamente simples.

Aprender os Princípios de Economia em Aulas Experimentais 

O experimento que descrevi aqui é um de muitos, que professores já jogam com seus alunos na sala de aula. No site de Greg Delemeester e Jurgen Brauer você pode encontrar os links para as instruções de muitos desses jogos. É possível montar um curso inteiro de microeconomia que comece cada novo tópico com um experimento. Em próximos posts neste Blog, apresentarei outros experimentos que gosto de usar para introduzir meus alunos à Teoria do Comportamento do Consumidor, do Produtor e um jogo sobre o Primeiro e Segundo Teorema de Bem-Estar. Alguns desses experimentos são da minha autoria, mas a maioria foi desenhada por outros professores ou aprendi com colegas. Tentarei ao máximo dar os créditos autorais, mas nem sempre é possível saber quem usou primeiro uma dinâmica que outros professores começaram a usar em suas aulas. Para o jogo de mercado descrito nesse post, refiro aos artigos de Chamberlin (1948), Smith (1962; 1964), o Handbook organizado por Kagel e Roth (1995), o livro de Davis e Holt (1993) e também a descrição em Ygosse Battisti (2012). Agradeço meus colegas que me introduziram a esse e outros jogos, entre eles, David Reiley, Denise Hazlett, Charles Holt e Arthur Schram.

 

 

2 Comentários

Envie seu Comentário