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Em artigo anterior, defendi a concepção kantiana de que a conduta humana é pautada por imperativos éticos, que motivam as pessoas a fazer escolhas de acordo com certos princípios. Além disso, mencionei brevemente que as pessoas cultivam uma autoimagem positiva, pois gostam ver a si mesmas como pessoas éticas, em paz com sua consciência.

Se isso é verdade, como explicar as muitas transgressões que são diariamente noticiadas pela mídia? Por que o noticiário está cheio de relatos de condutas desonestas, violentas, ofensivas, prejudiciais ao bem-estar alheio? Quando pensamos no caso brasileiro, como explicar as proporções epidêmicas que a corrupção parece estar assumindo, tal como analisado por Vasconcelos (2016)?

A resposta a essas questões não é fácil, e existe ainda um longo caminho a percorrer na investigação sobre as causas desses fenômenos. Contudo, as pesquisas em economia comportamental têm dado algumas pistas interessantes. Autores como Dan Ariely, George Loewenstein, Jason Dana e outros conceberam e aplicaram um grande número de experimentos com o objetivo de estudar desvios éticos de natureza e gravidade variáveis. Essas pesquisas jogam luz sobre as causas de comportamentos antiéticos e, por extensão, podem ajudar na formulação de políticas voltadas para combatê-los.

Uma dessas pesquisas é relatada em artigo de Dana, Loewenstein e Weber (2012), que explora a noção de “imunidade ética”. A imunidade ética permite aos seres humanos combinar duas condutas à primeira vista incompatíveis: cometer infrações e preservar uma autoimagem favorável. Com base no artigo citado, tratarei aqui de mecanismos que tendem a possibilitar o alcance simultâneo dessas duas metas.

Antes, porém, é importante reforçar uma constatação do senso comum: é sempre mais fácil enxergar os malfeitos dos outros do que os nossos. Nossa sensibilidade é definitivamente maior para os grandes episódios de corrupção, estampados na mídia, do que para as pequenas desonestidades que cometemos, todos nós, de vez em quando, mesmo sendo pessoas éticas (Ariely 2009). Somos, pequenos e grandes infratores, hábeis em escamotear nossos deslizes morais para nós mesmos. Como se dá essa prática que remete a uma forma de autoengano, essa mentira ardilosa que contamos para nós mesmos de que fala Giannetti (1998)?

O que diz a teoria econômica

No estudo da criminalidade, a teoria econômica nos ensina a raciocinar com o cálculo de custo-benefício: crimes ocorrem quando o custo de cometê-los é percebido como inferior à sua utilidade esperada, medida pelo benefício que proporcionam multiplicado pela probabilidade de ser efetivamente alcançado. Um componente importante do custo total de uma transgressão é a chance de o infrator ser pego “com a boca na botija” e, portanto, ser punido. Ocorre que essa probabilidade é muitas vezes diminuta: dado o alto custo de fiscalização, somente uma pequena parcela dos desvios de comportamento chega a sofrer punição. Segue-se que o crime muitas vezes compensa, e seus benefícios tendem a superar seus custos.

Ora, se é essa a explicação, combater a criminalidade depende de se trabalhar em uma ou ambas de duas pontas: aumentar a severidade das punições e/ou a probabilidade de serem aplicadas. Essa maneira de pensar a questão tem certamente sua sabedoria, mas o custo associado a uma maior fiscalização pode não ser compensatório, uma vez que a maioria das pessoas age eticamente, na maioria das vezes. Além disso, pesquisas têm mostrado que o controle externo e a própria severidade da punição não são muito eficazes no combate às transgressões (Ariely 2009, p. 280).

O que dizem os economistas comportamentais

É nesse contexto que a economia comportamental tem se empenhado em investigar situações em que indivíduos que buscam agir eticamente, e que gostam de ver a si mesmos como virtuosos, incidem em práticas antiéticas. Dito de outra forma, os pesquisadores da área têm procurado entender melhor os mecanismos de controle interno capazes de afastar o indivíduo de escolhas que atentam contra sua própria moral.

Dana, Loewenstein e Weber (2012) investigaram as armadilhas éticas a que estão sujeitas pessoas que conhecem as normas e, mais ainda, estão empenhadas em segui-las. O objetivo dos autores é localizar os mecanismos responsáveis pela existência dessas armadilhas, assim abrindo caminho para seu desmonte.

Uma explicação importante para o fato de as pessoas fraquejarem diante de armadilhas éticas é que elas conseguem persuadir a si mesmas de que sua conduta não afronta de fato as normas. Pessoas que gostariam de ser honestas, generosas, verdadeiras, justas, agem de forma desonesta, egoísta, mentirosa e prejudicial aos outros. Evitam, porém, o constrangimento que poderia resultar disso, graças a uma carapaça que as blinda em relação ao sentimento desagradável decorrente de sua conduta. Segundo os autores, entram em ação mecanismos capazes de gerar imunidade ética, dois dos quais serão aqui descritos: a diluição de responsabilidade e a exploração da incerteza.

Diluição de responsabilidade

Há uma crescente literatura que estuda o fato de pessoas éticas agirem, de vez em quando, de forma não ética. A questão não é a existência de um grupo reduzido de “maçãs podres” na cesta, mas o fato de que a maioria das pessoas incorre, por vezes, em pequenas transgressões. Indivíduos que enfrentam decisões difíceis do ponto de vista ético muitas vezes optam por compartilhar com outros a responsabilidade por escolhas antiéticas. Graças a esse mecanismo psicológico, elas conseguem se desvencilhar de responsabilidade (accountability) por sua conduta.

A diluição de responsabilidade pode operar de duas formas, verticalmente e horizontalmente. No primeiro caso, a pessoa delega a intermediários a execução dos “atos sujos” . Os velhos coronéis não matavam o inimigo ou desafeto, mandavam matar; o industrial contrata alguém para difamar o produto de seu concorrente; o diretor pressiona seu subordinado para maquiar a contabilidade da empresa; e assim por diante.

É curioso que essa diluição de responsabilidade não só leva o próprio agente a sentir-se menos responsável pela infração, como é assim percebida pelos observadores externos. Pesquisas experimentais indicam que as ações antiéticas praticadas por intermédio de subordinados são vistas por terceiros como menos graves, e sofrem punições mais brandas (Dana e outros, 2012, p. 202).

Quando opera no sentido horizontal, a diluição de responsabilidade é possibilitada pela presença de outros participantes da situação. Considere, por exemplo, o caso de uma vítima grave de acidente de trânsito. O transeunte que presencia o acidente deixa de prestar socorro à vítima, com a justificativa de que outros o farão. Assume assim a posição de mero espectador, sentindo-se moralmente dispensado de se envolver na atividade de socorro, sendo esse efeito tanto mais acentuado quanto maior o número de participantes da cena. De forma semelhante, o indivíduo que desvia recursos do caixa de uma empresa pode consolar-se com a ideia de que ele não está sozinho, outros de seu departamento ou em sua posição também cometem ou cometeram esse deslize. O mesmo expediente é usado pelo estudante que cola nas provas, que aplaca sua culpa observando que aquele é o procedimento rotineiro em sua turma de colegas.

Quando a responsabilidade é diluída (“todo mundo faz”, “não fui eu”), os infratores conseguem evitar sentir-se responsáveis por sua conduta.

Exploração da incerteza

Outro mecanismo importante de imunidade ética é a exploração da incerteza, expediente no qual as pessoas podem apoiar-se para preservar uma imagem favorável de si mesmas. Dana, Loewenstein e Weber comprovam essa prática em diferentes experimentos envolvendo jogos de ditador, que, como se sabe, caracterizam-se pela presença de um líder ao qual cabe propor a divisão dos resultados do jogo.

Em jogos cujos payoffs são incertos, e nos quais não existe uma regra que obrigue o ditador a divulgar a informação sobre seu montante, o ditador tende a ser menos generoso na repartição dos ganhos. Por exemplo, um participante que recebeu determinada quantia de dinheiro, que em princípio poderia repartir com seu parceiro, tende a mantê-la inteiramente para si mesmo quando a outra parte desconhece essa possibilidade de repartição, ou mesmo o fato de haver um jogo.

Quando há ambiguidade sobre as consequências possíveis de uma escolha, os autores verificaram que o ditador tende a enxergar os resultados para o parceiro como melhores do que efetivamente são. Cria, assim, certa imunidade ética, ao se convencer de que suas escolhas na repartição dos ganhos “não são tão más assim” do ponto de vista de seu parceiro.

Para concluir…

Por que as pessoas fazem escolhas que as levam a adotar condutas que vão contra seus princípios? Uma explicação possível, embora certamente insuficiente, é o fato de encontrarem mecanismos que lhes conferem imunidade ética. Contextos em que as pessoas podem evitar sentir-se responsáveis por suas escolhas, seja por meio da diluição de responsabilidade, seja porque as consequências potenciais dessas escolhas são incertas, favorecem a ocorrência de transgressões. Tornam, portanto, mais frequentes as armadilhas éticas.

O reconhecimento desse padrão é importante na tentativa de desenhar políticas que colaborem para a redução de infrações. Além dos dois mecanismos descritos acima, Dana, Loewenstein e Weber abordam a prática de “jogos mentais” a que as pessoas recorrem na busca de justificativas para escolhas antiéticas. Este poderá ser o tema de um próximo artigo.

Referências

D. Ariely, Predictably irrational: The hidden forces that shape our decisions. revised and expanded edition. Harper Perennial, 2009.J. Dana, G. Loewenstein e Roberto A. Weber, Ethical immunity: how people violate their own moral standards without feeling they are doing so. in: D. De Cremer e A. E. Trenbusel, Behavioral business ethics: Shaping an emerging field. NY, Routledge Academic, 2012, pp. 201-219.
E. Giannetti, Auto-engano. Sao Paulo, Companhia das letras, 1998.
G. Loewenstein, Behavioral decision theory and business ethics: Skewed trade-off between self and other. In: D. M. Messick e A. E. Trenbusel (eds), Codes of conduct: Behavioral research into business ethics. Russel Sage Foundation, 1996, pp. 214-227.
Vasconcelos, S. P.. Ferramentas comportamentais anti-corrupção. www.economiacomportamental.org, 2016.

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