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“Estranho”: excêntrico, extraordinário, fora do comum. Que foge às normas estabelecidas. No inglês, “weird”.

Por WEIRD também entende-se sociedades ocidentais (western), com alta escolaridade (educated), industrializadas (industrialized), ricas (rich) e democráticas (democratic). Tais nações são o lar de 12% da população mundial. No entanto, 80% dos estudos de psicologia, com conclusões sobre o comportamento humano, baseiam-se em tais amostras. São amostras “estranhas”, em ambas as definições: além de serem uma subrepresentação do que é ser humano, muitas vezes os comportamentos reportados são grandes exceções (outliers).

Quadro semelhante é encontrado quando falamos do aspecto prático de aplicações de ciências comportamentais pelo mundo. Unidades governamentais com a agenda nasceram na última década predominantemente em locais WEIRD, como Estados Unidos, Austrália e Europa. Seus casos de sucesso foram popularizados nas plataformas do ecossistema e rapidamente ganham o mundo como exemplo do potencial da área. Mas o quão válidas são essas conclusões em outros contextos?

2020 foi marcado pelo fortalecimento da agenda de incentivo a aplicações das ciências comportamentais em contextos não WEIRD, incentivando replicações e aplicações em países em desenvolvimento (‘sul global’). A questão mostra-se pertinente por quatro principais aspectos: para comprovar a validade teórica de traços determinantes de comportamento; para averiguar a validade prática da aplicação de tais princípios em temáticas sociais; para melhor direcionar os esforços das ciências comportamentais a prioridades locais; e para adequar a execução deste tipo de projeto às particularidades e limitações contextuais.

Primeiro, é importante saber se os estudos base dos princípios comportamentais incluíram uma amostra representativa. Conceitos das ciências comportamentais, são em alguns casos, assumidos como traços fundamentais do comportamento humano. Contudo, tais fenômenos podem ser resultado do contexto e da cultura, o que resultaria em um quadro de falta de validade externa, isto é, quando as conclusões de um experimento não podem ser estendidas para outros contextos. Quando a amostra analisada é um recorte muito particular da população, por exemplo, o estudo pode não ter validade externa.

De todas as disciplinas comportamentais, a psicologia tem os maiores desafios neste aspecto. Nos últimos anos essa preocupação metodológica tem ganhado destaque, e estudos passaram a investigar o que é válido através das culturas, e o que é particular a cada contexto.  A exemplo, este ano foi publicado um estudo com replicações da Teoria do Prospecto, conceito base da economia comportamental. Originalmente, a amostra contava com pessoas dos Estados Unidos, Israel e Suécia. O estudo de 1979 foi então replicado em 19 países e 13 linguagens, e suas conclusões foram sustentadas. Por outro lado, nem sempre isso ocorre. Ilusões visuais que afetavam universitários dos EUA não afetavam, por exemplo, uma tribo no Kalahari. As percepções de senso de justiça, reciprocidade e cooperação, mensurada por experimento como o jogo do ultimato e do ditador, também mostrou variar entre culturas. Visões ligadas à auto estima, conformidade e escolha pessoal mostram ser diferentes entre nações ocidentais e orientais. Variações na linguagem expressam conotações diversas, ou reforçam habilidades diferentes (como a cognição espacial) entre culturas.

Para além das consequências dessa limitação metodológica em estudos teóricos, a preocupação também é válida na prática, ao se aplicar tais conceitos em políticas públicas, processos e serviços. O contexto importa: um princípio que funciona bem na Inglaterra não necessariamente funcionará da mesma forma no Peru. Um experimento de campo em um país pode não ter suas conclusões válidas para outro, uma vez que os determinantes e as barreiras ao comportamento diferem (ou podem diferir) de cultura para cultura.

Como exemplo, peguemos o caso de arrecadação de impostos. Comunicações fiscais foram redesenhadas no Reino Unido e nos Estados Unidos incorporando princípios pró-sociais, como o uso de normas sociais descritivas. Frases como “faça como a maioria e fique em dia com seus impostos” e “9 entre 10 pessoas já pagaram seus débitos” trouxeram resultados positivos na aceleração da arrecadação (ENAP, 2019). No entanto, em outros países, como alguns no Leste Europeu e na América do Sul, apenas abordagens ameaçadoras eram eficientes em aumentar a arrecadação (ENAP, 2019). Por isso é importante replicar esses estudos de aplicações das ciências comportamentais, testando a solução naquele processo local antes de simplesmente implementá-la. A importância de se ter esse resultado não se restringe ao contexto local, mas vale também para regiões similares. Sabendo que tipo de ferramenta funciona melhor em culturas próximas, unidades podem desenhar soluções mais fiéis às barreiras de comportamento atuantes. Ao se prototipar um nudge no Brasil, é pertinente levar-se em conta o princípio que funciona na Argentina com mais peso do que o que funciona na Noruega. O leque ferramental expande-se e aperfeiçoa-se, com ênfase na importância de unidades de ciências comportamentais do sul global inserirem-se no ecossistema mundial e compartilharem seus resultados entre si.

No aspecto estratégico, contextos diferentes tem prioridades diferentes. Em um primeiro momento, o ecossistema de ciências comportamentais aplicada priorizou certos tipos de desafios, replicando os casos de sucesso das primeiras unidades. Tais projetos já tinham alguma evidência de resultados efetivos, sendo ganhos fáceis e uma boa forma de construir capacidade interna e fortalecer a agenda no âmbito local. No entanto, cada região tem seus desafios particulares. Inserir e capacitar equipes locais em insights comportamentais permite a execução de projetos mais adequados às prioridades daquela região, não apenas replicando prioridades de outros governos. Posteriormente, isso também será útil para regiões com os mesmos desafios.

Por fim, destaco a importância de questões práticas. Projetos em países em desenvolvimento devem adaptar-se criativamente a limitantes estruturais, como dados não organizados ou uma defasagem na estrutura de telecomunicações para atingir o público alvo. Compartilhar as técnicas e estratégias que funcionam para executar todo o processo de um projeto de ciências comportamentais com sucesso pode facilitar as aplicações nestes contextos, que têm um potencial de impacto imensamente relevante.

Que o mundo das ciências comportamentais evolua para ser menos estranho.

Para saber mais…

ENAP, 2019. Como aumentar o pagamento de impostos em atraso? : dívidas do imposto predial e territorial urbano (IPTU) parcelado. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/5220. Acesso em: 09/12/2020.

FGV. 7º Encontro Brasileiro de Economia e Finanças Comportamentais 2020 – DIA 1 – PARTE 2. YOUTUBE. Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=49zjkP-_prE&t=139s. Acesso em 09/12/2020.

Gravação do encontro do GEEC com Neela Saldanha: https://www.youtube.com/watch?v=-gDEFuSYs84

Gravação da palestra da iniciativa Behavioral Change for Good (BCFG) com o Professor Neil Lewis, Jr: Whose Minds Matter? Sampling, Measurement, Inference, and Application Considerations as we Diversify the Behavioral Sciences, acesso em: https://youtu.be/puX5Yi9Gy2M

Trabalho para contextualização dos vieses na índia: https://medium.com/busara-center-blog/how-preeti-was-born-af4583208fc9

Compilado da Behavioral Scientist com referências sobre o tema: https://behavioralscientist.org/research-lead-prospect-theory-replicates-unweirding-psychology-a-challenge-to-evolutionary-psychology-and-more/

Henrich, Heine e Norenzayan. 2010. The weirdest people in the world? Disponível em < https://www2.psych.ubc.ca/~henrich/pdfs/WeirdPeople.pdf>

Ruggeri et al. 2020. Replicating patterns of prospect theory for decision under risk. Disponivel em <https://www.nature.com/articles/s41562-020-0886-x.epdf?sharing_token=JFESZDKzIkuzMH1vcqoaYtRgN0jAjWel9jnR3ZoTv0MKy30-2blXvi-vrS1Eb0Em9R5yoyd4KOgbQfIJpMhj0aktm-c_XTfss9xh4lIawSE8CfrDiWMI2wyyB5P6jmCY7brZClmHtxRqv05xL8x6kRK1gE9DBHUVL1h_LPYgrkg%3D>

Muttukrishna et al. 2020. Beyond Western, Educated, Industrial, Rich, and Democratic (WEIRD) Psychology: Measuring and Mapping Scales of Cultural and Psychological Distance. Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0956797620916782

Flora Finamor Pfeifer é Cientista comportamental e coordenadora de conteúdo na Movva. Mestranda em Administração Pública e Governo pela FGV e economista pela FEA USP. Co-fundadora e organizadora do Grupo de Estudos em Economia Comportamental (G.E.E.C.). Trabalhou por dois anos no programa de ciências comportamentais da Prefeitura de São Paulo, parte do (011).lab, o laboratório de inovação em governo.

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