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Divã

Paul Verhaeghe é um psicanalista belga que escreve livros. Isso não faria dele excepcionalmente diferente de outros psicoterapeutas, se o seu último livro não fosse sobre Economia.

Mas sua obra mais recente trata exatamente sobre isso. Ou, para ser mais preciso, o livro fala sobre o sistema sócio-económico ocidental actual – Neoliberalismo – e o efeito que este está a ter nas nossas mentes e nos nossos corpos.

Trinta anos de neo-liberalismo, de mercados livres, de privatizações, e o impacto daí resultante na identidade do indivíduo são cuidadosamente discutidos e analisados em What about me?, um livro encantador que nos oferece insights únicos sobre a economia e a sociedade, recolhidos através do método de investigação mais improvável – o divã de um psicanalista.

Conversei com Verhaeghe a respeito do que o motivou a escrever o livro e outros assuntos muito interessantes. Abaixo seguem as partes mais interessantes de nossa conversa.

Diogo Gonçalves: Porque é que escreveste este livro?

Paul Verhaeghe: Essa é uma longa história… Começa no final dos anos noventa, quando me apercebi que tinha havido uma enorme mudança na nosso prática clínica. Em vez das clássicas neuroses, passámos a ser confrontados com um grande número de problemas de depressão e ansiedade. A natureza destes problemas era também diferente; eu entendia-os como patologias reais, o que os distinguia de problemas de índole neurótica. No mesmo período, pode observar-se na psiquiatria um aumento dos distúrbios de personalidade. Ou seja, distúrbios ao nível da identidade. Eu associei as duas coisas, e dei por mim a pensar quais eram as razões para esta mudança. Demorei alguns anos e uma grande quantidade de estudos, até perceber que a nossa identidade mudara, devido a uma mudança na nossa sociedade; e que esta mudança originara distúrbios diferentes. A nosssa sociedade tornou-se uma sociedade neoliberal, com muitas falhas psicológicas. Quanto mais estudava, mais isso se tornava óbvio. O livro é o resultado.

DG: Interesante… isso recorda-me um pouco o trabalho do Sociólogo Émile Durkheim, que demonstrou que as taxas de suicídio variam de acordo com a forma como as sociedades são estruturadas. Qual é a característica das sociedades neoliberais que nos pode impedir de viver vidas com significado, originando desordens de indentidade?

PV: Primeiro uma observação importante: existem muitos indicadores psicosociais de saúde (gravidez na adolescência, violência doméstica, ansiedade e depressão, abuso de drogas, abandono escolar, etcetera) que se correlacionam com o neoliberalismo, mas as taxas de suicídio não são um deles. Ou pelo menos, não de forma convicente. Mas para responder à tua pergunta, posso falar-te dos estudos de Wilkinson and Pickett. Eles descobriram que o aumento da desigualdade nos rendimentos de um país, região ou até cidade se correlaciona significativamente com a maioria dos indicadores psicosociais de saúde. O aumento da desigualdade nos rendimentos é um traço típico das sociedades neoliberais. Se pensarmos nas consequências do liberalismo a um nível mais psicológico, não será exagerado dizer que o neoliberalismo nos tornou indivíduos competitivos. Se a isso juntarmos a meritocracia económica, criamos um sistema de vencedores e perdedores, em temros individuais. O passo em direção à solidão, ansiedade e depressão é muito pequeno nesse sistema binário. Em termos gerais, faz-nos sentir infelizes, pois somos animais sociais, precisamos do outro, prosperamos em grupo. Este sistema económico anula este aspecto crucial da natureza humana.

DG: No teu livro dás-nos uma boa introdução às origens do neoliberalismo, antes de construires o argumento de que a aceitação do neoliberalismo teve um impacto muito negativo na sociedade e instituições. Podes dizer-nos em que fundações esta ideologia se ergue, e porque é que ainda tão apelativa para governos e países pelo mundo fora?

PV: Se quiseres estudar a história do neoliberalismo, existem vários bons livros sobre o assunto. Basicamente, tudo começa com Ayn Rand e seus seguidores (entre eles: A. Greenspan) e os chamados “rapazes de Chicago” de Milton Friedman. Para mim, o aspecto mais importante acerca da sua fundação é a ligação óbvia ao Darwinismo social. De acordo com esta ideologia pseudocientífica, a “sobrevivência do mais apto” é interpretada como sobrevivência do mais forte, o que dá ao mais forte uma “autorização” supostamente científica para o seu comportamento anti-ético. A segunda fundação soa mais positiva, i.e. a ideia que um ser humano não é totalmente determinado e que pode fazer escolhas. Infelizmente, esta ideia não foi traduzida numa obrigação moral: todos temos que fazer as escolhas que vão tornar a nossa vida num sucesso profissional; além disso, estas escolhas dependem apenas dos nossos esforços pessoais. Esta é a versão neoliberal do Sonho Americano. Um colega Americano perguntou-me se eu sabia porque é que lhe chamam sonho Americano. A resposta é que tens de estar a dormir para acreditar nele. Enquanto ideologia, é muito sedutor para os governos, porque lhes permite tomar um conjunto de decisões antidemocráticas. A sua justificação combina um raciocínio pseudo-científico com o argumento de que “Não existem alternativas”. Obviamente, existem alternativas. A Islândia é um exemplo politico, Semco (uma multinacional Brasileira) e Mondragon (Espanha) são exemplos económicos de muito sucesso.

DG: Num dos capítulos do teu livro – A Sociedade Enron – afirmas que as nossas identidades estiveram sempre incorporadas numa estrutura religiosa, ética, e social, o que deixou de existir com o advento do neoliberalismo, em que até o estado se subordina a um suposto mercado “livre”. Quais são as características distintivas das alternativas (ou qualquer alternativa individual) que acabaste de referir? E porque é que seriam benéficas para os indivíduos e sociedades?

PV: O Neoliberalismo tem todas as características de um discurso totalitário apesar de não ser um regime político. É tão totalitário que até engoliu os políticos – os nossos políticos obedecem aos ditames do mundo financeiro. Enquanto discurso totalitário, tomou conta da educação, sistemas de saúde, arte – é muito difícil escapar, é como que a “Invasão dos ladrões de cadáveres ” por todo o lado.
Mas contém uma falácia básica, e hoje, isso está a originar uma viragem em direção a um novo discurso. O neoliberalismo separa-nos uns dos outros; obriga-nos a ser indivíduos competitivo..e apenas isso. É claro que os humanos são competitivos, mas não devemos esquecer-nos que somos animais sociais. Precisamos de um grupo para nos sentirmos bem. O mantra do neoliberalismo, impulsionado por Tatcher, diz exactamente o oposto: “Não há tal coisa como uma sociedade, existem apenas indivíduos”. Pois bem, isso chegou a um limite; as pessoas estão à procura de novas formas de criação de grupos. Estes grupos estão a organizar-se de uma forma mais cooperativa, o que significa que tanto os indivíduos como a parte comum são tidos em conta. Pensemos no “transition movement”, pensemos na “deliberative democracy” (Fishkin).

DG: O que é que pensas acerca do nome deste blog (“Há Almoços Grátis”)?

PV: Pela minha experiência os melhores almoços são aqueles que partilhamos com outras pessoas, e em relação a isso, o dinheiro não é determinante.

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