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Temos visto muito artigos falando da literacia financeira, ou seja, da competência de uma pessoa para lidar com temas financeiros, especialmente na área de finanças pessoais. Não é estranho pensar que, no Brasil, o cidadão possa se atrapalhar com a complexidade dos serviços bancários e com as opções de crédito disponíveis. O efeito disso é visto quando órgãos reguladores do sistema financeiro lançam medidas que propiciam a renegociação de dívidas: a as filas são enormes nos locais onde elas acontecem. Ou seja, muita gente está inadimplente.

O problema maior é que, apesar de todos os esforços de renegociação de suas dívidas, em um espaço muito pequeno de tempo, as mesmas pessoas tornam a se endividar por conta da combinação de alguns fatores como: renda baixa ou desemprego, crédito fácil (não necessariamente bancário) e baixo nível de literacia financeira.

Muitos programas têm sido desenvolvidos, com apoio de órgãos governamentais e não governamentais, para ampliar ações de educação financeira desde os primeiros anos do ensino básico. Isto significa ensinar às crianças o valor do dinheiro e como fazer a gestão dos seus recursos econômicos, o que envolve ensiná-las a ganhar, poupar, comprar e investir.  Mas o conhecimento, em si mesmo, não garante o desenvolvimento da literacia financeira, porque esta envolve um aspecto comportamental: quais são as crenças sobre o uso do dinheiro, sobre o risco e sobre preferências no curto e longo prazo (FERREIRA, 2015)?  As pessoas usam adequadamente seus recursos econômico-financeiros?

Recentemente, Lima (2016) resolveu investigar esses aspectos junto a alunos de escolas de negócios, dos cursos de Administração, Economia e Contábeis, que têm em seus currículos diversas disciplinas da área financeira. Partiu do pressuposto de que esses alunos teriam um nível elevado de literacia financeira e, ainda, teriam baixo nível de endividamento.  Tendo em sua base de dados cerca de 700 alunos, Lima  observou que sim, o nível de conhecimento aumenta à medida que o aluno progride no curso. Ou seja, quanto mais o aluno conhecia sobre temas econômico-financeiros, melhores eram suas respostas aos problemas econômico-financeiros apresentados na pesquisa. O que Lima não esperava foi o nível de endividamento desses alunos, medido pelos créditos contratados: 75% deles usava cartão de crédito, 5% usava financiamento para bens móveis, 4% tinha empréstimos bancários, 5% tinha débitos em lojas, entre outros tipos de contratos de crédito. Até aí, nada alarmante. O problema começou a se delinear quando Lima analisou os motivos alegados para essas contratações: 30% o fizeram por compra compulsiva, 17% por má administração do dinheiro e 17% por falta de planejamento. Por esse estudo de Lima (2016) pode-se inferir que o quadro encontrado deva ser pior se considerarmos a população em geral. Conhecer sobre aspectos econômico-financeiros não garante que as pessoas saiba m ou queiram (ou possam) aplicar esses conhecimentos em seu dia a dia.

Afinal, seria de se esperar que alunos de escolas de negócios, por conta de sua educação financeira, pudessem captar os problemas decorrentes do uso indevido do crédito, especialmente no Brasil, onde as taxas são altas e beirando níveis estratosféricos em casos de inadimplência. Esses jovens deveriam captar a incongruência entre o montante da dívida que contratam e sua capacidade de pagamento. Estudo de Cesar, Boggio e Campanhã (2015) mostra que quando uma informação é incongruente as pessoas demoram mais para tomar uma decisão frente a um problema proposto. É como se o cérebro captasse essa incongruência e mandasse uma informação para o sistema decisor: “preste mais atenção!”.  Todavia, apesar de avisos desse tipo, as pessoas nem sempre decidem da forma que seria considerada racional, conforme estudos da economia já apontam há muitas décadas (Kahneman e Tversky, 1979). Este parece ser o caso dos jovens endividados. Há mais fatores em jogo quando decidem se endividar do que a sua capacidade para analisar problemas econômicos.

Em estudo recente sobre a decisão envolvida na estimativa de metas orçamentárias, Cesar e Perez (2015) mostram que mesmo os comportamentos de decisão considerados racionais sofrem, sistematicamente, a influência de aspectos sócio-afetivos. Um dos fatores mais apontados nesse estudo foi a percepção de risco e o medo dele decorrente. As pessoas analisam o risco envolvido com a decisão, seja para sua vida pessoal, profissional ou para os envolvidos com o resultado de suas decisões. Independente do nível de risco, ele pode ser percebido de três maneiras diferentes: como risco pavoroso (dread risk), que se caracteriza como uma sensação de perda de controle, eminência de potenciais catástrofes, possibilidade de consequências fatais e outras situações semelhantes; risco desconhecido, que se caracteriza como a percepção de aspectos que podem se transformar em riscos, mas que não são conhecidos, observáveis (são presentes, mas obscuros); o alcance do risco, que se caracteriza pela estimativa das perdas decorrentes do risco ou do montante dessas perdas (PLOUS, 1993).

Gestores que ocupam altas posições hierárquicas na área financeira e que declaram que sentem medo, associam o mesmo à análise antecipada que fazem do alcance do risco decorrente de suas decisões. No caso dos jovens, que estão entrando no mundo de trabalho e que de modo geral não têm experiência com decisões econômico-financeiras, é possível que vivenciem os três tipos de medo descritos; além desses, talvez se possa acrescentar o  medo de não serem socialmente aceitos. Na ânsia de “ter” e de “ser aceito”  (supondo que estejam associados) esses jovens endividados acabam agindo em desacordo com seu aprendizado  financeiro.  Têm educação financeira, mas não se comportam da forma adequada em termos de gestão de seus recursos. Como a literacia envolve aspectos de conhecimento técnico, de aprendizagem de habilidades para fazer a gestão de recursos e de atitudes favoráveis ao controle desses recursos, talvez se possa dizer que falte aos jovens o desenvolvimento da literacia. É um desafio para os educadores: o desenvolvimento da educação financeira deve começar no ensino fundamental. Quem sabe assim os jovens cheguem à idade adulta com a predisposição a agir de acordo com essa educação, comportando-se com sabedoria frente ao seus recursos econômico-financeiros. Talvez alcancem, de fato, a literacia financeira.

Referências:

CESAR, Ana Maria Roux.V.C.; BOGGIO, Paulo S.; CAMPANHÃ, Camila. (2015). Neuroeconomia: uma visão geral sobre o tema. In AVILA, Flavia.e BIANCHI, Ana Maria. Guia de economia comportamental e experimental. São Paulo: 2015. EconomiaComportamental.org. Disponível em www.economiacomportamental.org. Licença: Creative Commons Attribution CC-BY-NC – ND 4.0

CESAR, Ana Maria Roux.V.C.; PEREZ, Gilberto. (2016). . Análise de aspectos sociais e afetivos em situações de decisão de metas orçamentárias.  XL Encontro da ANPAd – ENANPAd, 2016, Costa do Sauípe, BA. Anais.

FERREIRA, Vera Rita de M. (2015).  Psicologia Econômica: mente, comportamento e escolhas. In AVILA, Flavia.e BIANCHI, Ana Maria. Guia de economia comportamental e experimental. São Paulo: 2015. EconomiaComportamental.org. Disponível em www.economiacomportamental.org. Licença: Creative Commons Attribution CC-BY-NC – ND 4.0

LIMA, Marcelo Prudêncio de (2017). Literacia Financeira e Endividamento Pessoal: Um estudo com alunos de cursos da área de negócios. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016.Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Ciências Contábeis , Mestrado Profissional em Controladoria Empresarial. São Paulo..

PLOUS, S. (1993). The Psychology of Judgment e Decision Making. New York: McGraw-Hill.

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