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No final do mês de março, foi lançada a edição de 2017 do World Happiness Report (WRH – Relatório Mundial de Felicidade), comissionada pela ONU e editada por John Halliwell, Richard Layard e Jeffrey Sachs, acadêmicos seminais na economia da felicidade (ou “bem-estar subjetivo”).

O relatório apresenta estudos em grande profundidade sobre diferentes aspectos e estudos de caso sobre determinantes e evoluções do bem-estar subjetivo e tem como fonte principal de informações pesquisas de campo realizadas pelo Instituto Gallup em todos os países, nas quais os participantes atribuem um valor de 0 a 10 para a sua posição em uma escada imaginária em que 0 é a pior vida possível, e 10 é a melhor. Esta metodologia possibilita estabelecer valores médios para o bem-estar subjetivo para as populações dos países participantes, e permite estabelecer comparações entre diferentes populações, além de permitir estudos de correlações entre felicidade e outras circunstâncias objetivas e subjetivas. O formato mais intuitivo de consolidar estas informações é o ranking dos índices de felicidade dos 155 países participantes.

Apesar de o relatório apresentar informações e análises bastante ricas, o foco da cobertura de imprensa concentrou-se nas mudanças no topo do ranking, ou seja, na discussão rasa de qual é o “país mais feliz do mundo” – na realidade, apesar de a Noruega apresentar o maior índice médio, não há diferença estatisticamente significativa entre os 5 primeiros colocados (Noruega, Dinamarca, Islândia, Suíça e Finlândia). Discussões importantes, como por exemplo o fato de que o impressionante progresso material da China nos últimos anos não tem se refletido de forma relevante no aumento da felicidade da sua população, ou a deterioração do bem-estar subjetivo na Europa Ocidental na última década foram negligenciadas. Mais ainda, peculiaridades extremamente relevantes sobre os dados do Brasil passaram desapercebidos.

O Brasil, com uma avaliação média de 6,635, ficou na vigésima segunda posição entre 155 países pesquisados, à frente de países objetivamente mais desenvolvidos como França, Itália, Japão e Coréia do Sul. Deve-se destacar que os dados do relatório foram coletados entre 2014 e 2016, justamente no período em que o país enfrentou a pior recessão econômica de sua história. Como isto é possível?

Um exame detalhado dos fatores estudados pelos autores poderia apontar alguns indícios. A regressão linear com múltiplas variáveis construída pelos autores para buscar os fatores que explicam a felicidade média de um país apontam para 6 variáveis significativas – algumas medidas objetivamente, outras levantadas na mesma pesquisa de avaliação de satisfação com a vida. São eles: renda per capita (log), rede de apoio social, expectativa de vida saudável, generosidade, percepção de liberdade individual e de corrupção – sendo que os três primeiros respondem por 80% da diferença entre a felicidade média dos países.

Entretanto, o Brasil não tem uma performance destacada em nenhum dos fatores individuais mencionados acima. Apesar de apresentarmos níveis de suporte social (definida como a disponibilidade de apoio em uma emergência acima da média internacional), nossa renda per capita, expectativa de vida, percepção de liberdade individual e corrupção são, na melhor das hipóteses, medíocres, e o nível de generosidade (medido por doações a caridades) é muito baixo. Como, então, um país com indicadores sociais e econômicos tão medíocres consegue apresentar níveis de felicidade da população satisfatórios?

A resposta parece estar escondida na parcela da felicidade não explicada pelas variáveis da regressão. O Gráfico 1 mostra a parcela “residual” de felicidade do Brasil e de alguns países selecionados. O significado do gráfico é que a felicidade média dos brasileiros, em uma escala de 1 a 10, é quase 1 ponto superior do que seria esperado pelas condições objetivas avaliadas na pesquisa. Em contrapartida e como exemplo, a felicidade média dos portugueses é mais de 0,7 ponto inferior à que seria esperada pelas suas condições objetivas. O “erro residual” dos brasileiros está entre os 10 maiores da amostra de 155 países. De fato, desconsiderando-se o erro residual, o Brasil se situaria na mera 56ª posição, atrás de todos os países desenvolvidos mencionados acima.

Gráfico 1: Parcela residual (não-explicada pela regressão) do índice de felicidade médio de países selecionados

gráfico felicidade

A presença de erros residuais é um fenômeno estatístico obrigatório em regressões lineares, de modo que o alto número do erro residual do Brasil, por si só, não tem significado. Entretanto, os valores dos erros devem distribuir-se de forma aleatória em torno de zero. Isto não ocorre no caso da regressão dos índices de felicidade: em sua grande maioria, os países vêm apresentando erros residuais na mesma ordem de grandeza nas diferentes edições do relatório[1]. Há, portanto, uma razão sistemática pela qual os brasileiros avaliam suas vidas como mais satisfatórias do que seria esperado pelas suas condições objetivas. Nas palavras inspiradas de Milton Nascimento, porque essa “gente ri quando deve chorar”?

Os autores do relatório reconhecem o fenômeno, mas não o exploram em profundidade. Uma razão potencial apontada seria que latino-americanos tendem a oferecer notas mais altas do que outras regiões do mundo, utilizando-se escalas iguais. De forma inversa, participantes do Leste da Ásia seriam naturalmente mais econômicos nas suas avaliações, e apresentam erros residuais negativos. Embora plausível (e conveniente), esta explicação desconsidera exceções como Venezuela e Paraguai no caso da América Latina, ou da Coréia do Sul na Ásia.

Outra hipótese, mais instigante, porém apresentada de forma superficial, é a admissão de que aspectos fundamentais da cultura e da vida social destes países possam estar sendo ignorados nas avaliações dos fatores determinantes da felicidade, e por isso provocando a discrepância entre a felicidade esperada e a medida. A observação empírica da reação e do relacionamento de estrangeiros com a cultura e com o estilo de vida dos brasileiros, desde expatriados corporativos alemães até refugiados haitianos, oferece combustível para que esta hipótese seja explorada com maior profundidade.

Milton, há mais de trinta anos, e em plena ditadura militar, já discernia que “quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”. A busca pelas razões deste “diferencial” de felicidade brasileiro, utilizando o ferramental econométrico e as lições fornecidas pela ciência comportamental, deve ser uma prioridade para aqueles interessados em desenvolver políticas públicas e ações concretas para a promoção do bem-estar da população – especialmente em um horizonte de austeridade fiscal e de limitação dos gastos sociais.

Concluindo, deve-se explicitar o alerta que o “capital de felicidade” brasileiro não é infinito, e nem desconectado do contexto histórico mais amplo. Na verdade, a comparação entre os relatórios de 2015 e 2017 já aponta para uma queda estatisticamente significativa na felicidade nacional – éramos 16º, com uma avaliação média de 6,983 no relatório anterior. Mais interessante, a redução na porção “residual” do índice foi mais de 2 vezes maior do que na porção explicada pela regressão.  Em suma, os exemplos dramáticos da deterioração do bem-estar subjetivo nos países do Sul da Europa (Grécia, Portugal, etc.), e, mais recentemente, da Venezuela, deveriam servir de aviso às lideranças da sociedade brasileira sobre a importância de se entender o funcionamento das alavancas da felicidade da população, e de administrá-las ativamente.


[1] De fato, o coeficiente de correlação (R2) entre os valores residuais dos relatórios de 2017 e 2015 para os países selecionados no Gráfico 1 é de 0,88 – altíssimo por qualquer parâmetro de avaliação.

Referências:

Helliwell, J.; Layard, R.; Sachs, J. World happiness report 2015. 1. ed. New York: Sustainable Development Solutions Network, 2015.

Helliwell, J.; Layard, R.; Sachs, J. World happiness report 2017. 1. ed. New York: Sustainable Development Solutions Network, 2017.

3 Comentários

  1. Excelente texto. Realmente as causas do relato de extrema felicidade dos brasileiros poderia ter sido melhor explorado no relatório do World Happiness Report.
    Fiquei com uma dúvida ao ler o artigo quando o mesmo menciona que os latino-americanos tendem a dar notas mais altas que os participantes do leste asiático. Este fato seria um viés da pesquisa ou uma postura já comprovada em experimentos de que asiáticos são mais “econômicos” nas notas em pesquisas?

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  2. Guilherme Lima

    Oi Anderson: muito obrigado pelo comentário. Não conheço pesquisa acadêmica sobre os latino-americanos, mas da minha época de contratante de pesquisas de mercado, esse era um tema recorrente. Sobre a comparação de asiáticos e norte-americanos, os autores do WHR referem a este artigo: Response Style and Cross-Cultural Comparisons of Rating Scales Among East Asian and North American Students; Chen, Chuansheng ; Lee, Shin-Ying ; Stevenson, Harold W; Psychological Science, 1995, Vol.6(3), pp.170-175.

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