Pequeno guia à Psicologia para economistas – Parte I
Esse é o primeiro artigo de uma série que mostrará um panorama das pesquisas em Análise do Comportamento Econômico. Essa área interdisciplinar estuda temas econômicos a partir das descobertas mais modernas de um ramo da Psicologia chamado Análise do Comportamento. Qualquer tema da Economia pode ser objeto da Análise do Comportamento Econômico, mas ao longo de décadas os interesses dos cientistas acabaram formando núcleos em torno de alguns temas favoritos:
• Bases psicológicas da aversão a perdas;
• Comportamento do consumidor diante de bens essenciais e supérfluos;
• Tomada de decisão em situações de risco;
• Estudos sobre como se forma a noção de Valor;
• Curvas de desconto (perdas de valor) no tempo e em função de risco;
• Medidas do valor subjetivo dos bens e seus efeitos sobre decisões;
• Estudos comparativos entre sistemas econômicos fechados e abertos;
• Ilusão da moeda (noção de dinheiro e flutuações reais e nominais).
Esses tópicos serão expostos pouco a pouco no blog, mas para iniciar a série cabe fazer uma pequena incursão no mundo da Psicologia.
Esse “guia” terá duas partes. A primeira mostrará um panorama da Psicologia moderna e suas principais linhas de pensamento, que inclui de um lado a Psicologia Comportamental e de outro a Psicanálise. A segunda parte tratará especificamente da Psicologia Comportamental – na qual a interação com a Economia é mais forte – e em um de seus ramos, a Análise do Comportamento, também chamada de Psicologia analítico-comportamental.
Juntas, as duas partes desse guia formam uma breve introdução a esse campo científico fascinante, mas que pode ser muito confuso aos iniciantes. Com isso, pretende-se evitar alguns “tropeços” comuns de economistas interessados em se aventurarem em artigos de Psicologia e no diálogo entre as duas áreas.
Territórios Demarcados
Poucas pessoas não-psicólogas sabem que, estritamente falando, não existe uma Psicologia, mas diversas. As faculdades e institutos de Psicologia são terrenos em que convivem – nem sempre amigavelmente– muitas e diferentes linhas de pensamento. Um economista interessado em artigos de Psicologia pode se sentir completamente perdido se não tiver uma noção dessas diferenças. Dois artigos psicológicos sobre um mesmo tema podem ser tão diferentes em termos de linguagem, argumentos, citações ou metodologias, que eles sequer parecerão falar do mesmo assunto.
Nós sabemos que na Economia a coisa também não é nada unificada. Há linhas de pensamento neoclássico, novo-clássico, keynesiano, marxista etc. Mas, mesmo que se acabe adotando uma ou outra linha de atuação, todo economista recebe ao longo de sua formação universitária ao menos um conhecimento básico sobre as linhas mainstream, especialmente a neoclássica e suas derivações. Tendo tido a oportunidade de passar pelos dois cursos de graduação, posso testemunhar que as diferenças dentro da Psicologia são muito mais profundas. Algumas matrizes de pensamento se tornaram praticamente planetas diferentes, cujos habitantes jamais se encontram, o que nem sempre os impede de formarem opiniões arraigadas sobre os outros “planetas”.
Cada país tem uma tradição que impõe ênfases na formação de seus estudantes. No Brasil, os cursos de Psicologia costumam enfatizar uma dentre duas matrizes de pensamento: psicologia comportamental ou psicanálise. Nos Estados Unidos, os cursos de graduação praticamente só ensinam linhas da Psicologia Comportamental. Na França ocorre o oposto e praticamente só se ensina Psicanálise. Não tenho muito contato com a grade curricular de outros países, mas as ênfases tendem a girar em torno dessas duas matrizes, comportamental e psicanalítica.
Essas tradições tendem a guiar o tipo de pesquisa desenvolvido em cada país. Não é à toa que a Economia Comportamental vibra nos Estados Unidos, por exemplo, onde todo pesquisador recebe uma forte formação em psicologia comportamental e as revistas cientificas estão mais abertas a publicarem trabalhos dentro dessa orientação.
A Psicologia Comportamental
A Economia Comportamental, como a própria denominação sugere, tem suas raízes na(s) Psicologia(s) Comportamental(is) (sim, existe mais de uma!). Essa é a vertente que me fascinou desde meus estudos de graduação e é sobre ela que falarei de agora em diante, em todas as minhas contribuições ao blog. O território da Psicologia Comportamental é vasto, marcado por muitos povoados, muitas fronteiras e algumas alianças históricas.
A mais relevante fronteira divide a Análise do Comportamento (ou Psicologia analítico-comportamental) da Psicologia Cognitivo-comportamental. Desde já clarifico que meu coração bate mais forte pela primeira, apesar de ter enorme respeito por muitos profissionais da segunda. A Análise do Comportamento tem uma das mais arraigadas tradições de pesquisa no Brasil e se encontra em plena expansão no país. Nos Estados Unidos predominam as Psicologias Cognitivo-comportamentais, apesar de ali estarem localizados alguns dos mais renomados centros de pesquisa em Análise do Comportamento.
Dois pontos comuns entre a Análise do Comportamento e a Psicologia Cognitivo-comportamental são o apego a evidências empíricas (dados!) e ao método experimental. Na prática, isso significa que a arena máxima para embate de teorias ou interpretações são os dados empíricos. Eles podem ter sido obtidos em laboratório ou no chamados ambiente “real”. Pessoalmente acho mais adequado usar o termo “ambiente social” para descrever quando uma pesquisa é conduzida fora do laboratório (afinal, o que ocorre dentro de laboratórios também é “real”…), mas vou manter o termo mais usado. Tanto na Análise do Comportamento como na Psicologia Cognitivo-comportamental, são os dados empíricos que guiam a formação ou revisão das teorias e interpretações e não o contrário. Aliás, corre pelos corredores acadêmicos o seguinte dizer: “teorias mudam o tempo todo, mas dados são para sempre”.
Apesar de ser possível ver uma aproximação entre a Análise do Comportamento e a Psicologia Cognitivo-comportamental no que concerne seu empiricismo (privilegiar dados sobre teorias) e sua preferência pelo método experimental (em que algumas variáveis são escolhidas e manipuladas diretamente enquanto as demais são mantidas constantes), há algumas diferenças importantes. Descreverei a seguir algumas características da Análise do Comportamento que tendem a distingui-la das demais.
Objeto de Estudo: o comportamento
A Análise do Comportamento adota uma visão abrangente e às vezes contra-intuitiva sobre o seu objeto de estudo, o comportamento. A linguagem popular diferencia “comportamento” de “pensamentos” ou “sentimentos”. O entendimento leigo é de que comportamentos seriam as ações que exercemos publicamente, que podem ser observadas por qualquer pessoa. Pensamentos e sentimentos seriam eventos que ocorrem “dentro da pele” de cada um e que ninguém além da própria pessoa tem acesso. Até aí, há acordo entre a visão leiga e a de analistas do comportamento. Discordâncias ocorrem quando se entende que o que acontece “dentro da pele” (emoções, sentimentos, pensamentos) seriam a causa do comportamento público. “Ele fez aquilo porque estava bravo” ou “Ela fez aquilo porque estava alegre” são uma afirmações comuns em nosso cotidiano.
Para a Análise do comportamento, o conceito de comportamento inclui tudo o que ocorre com uma pessoa, suas ações públicas (que todos podem observar) e suas ações privadas (que só ela pode observar). Entende-se que comportamentos seriam complexos conjuntos de eventos que aconteceriam ao mesmo tempo dentro e fora da pele.
Todos esses eventos teriam pelo menos três grandes determinantes: a história pessoal de cada um, suas características genéticas e a cultura em que cada pessoa foi criada e/ou convive atualmente. Usando uma linguagem mais técnica, diz-se que o comportamento é fruto de três esferas de determinação: ontogenética (história pessoal), filogenética (história de seleção da espécie) e cultural.
Assim como as ações públicas de qualquer pessoa, também suas ideias, atitudes ou sentimentos são moldados por essas três esferas. Sentimentos não ocorrem “do nada”, pensamentos não se formam “à toa”, emoções não “caem do céu”. Todos tem suas razões para existirem. Tais razões podem ser diferentes daquelas que determinam ações públicas (e muitas vezes o são, gerando conflitos diversos!), mas todos são esculpidos a partir de um mesmo material: a vivência daquele que age, pensa ou sente.
Se sentimentos, pensamentos e demais derivados são tão comportamentos quanto as ações públicas, eles não poderiam, portanto, serem também a causa de comportamentos. Isso seria incoerente! As causas do comportamento devem ser buscadas no ambiente – presente e passado – tanto físico quanto social. Variáveis do ambiente podem ser coisas bastante tangíveis como os bens que o comércio oferece para serem comprados, a renda disponível das pessoas, o fato de estar fazendo calor ou frio, privações ou abundâncias em geral. O ambiente social pode estabelecer fatores mais intangíveis e de difícil mensuração como hábitos sociais, regras não explícitas para se obter aprovação social (status), segurança ou o afeto de família, amigos, valores culturais, crenças etc.
O fato de algumas variáveis do ambiente social, como afeto ou aprovação, serem difíceis de serem medidas diretamente, não significa que elas devam ser excluídas de análises comportamentais, ou pior, consideradas como sendo de uma natureza diferente da física, algo não passível de ser observado. Todas elas devem ser, na medida do possível, incluídas nas análises comportamentais e parte do trabalho dos cientistas é desenvolver métodos confiáveis para isso.
Resumindo esse ponto. (1) sentimentos, emoções, pensamentos, atitudes são tão comportamento como nossas ações públicas, e, portanto, podem e devem ser incluídas em análises de comportamentos econômicos; (2) a observação e descrição de qualquer ação econômica (compras, vendas, investimentos, trabalho etc.) é apenas metade da tarefa de um pesquisador do comportamento econômico. A outra metade é a descrição das variáveis do ambiente físico e social vigentes no momento em que comportamentos econômicos, como comprar, trabalhar, investir etc. ocorrem, e do efeito que elas produzem sobre tais comportamentos. Análises feitas pela metade são de pouca valia para o avanço científico.
Prefácio à Parte II desse guia
A Análise do Comportamento Econômico é uma linha de pesquisa psicológica que privilegia a observação direta (revelada) dos principais comportamentos que regem a Economia: consumir, poupar, investir, trabalhar. Seus fundamentos filosóficos incluem o pragmatismo, evolucionismo e o selecionismo biológico. O objetivo aqui não será expor um tratado sobre filosofia ou metodologia, apenas enfatizar que tais fundamentos direcionam algumas práticas de pesquisas. Por exemplo, conduzem a uma preferência por pesquisas experimentais e a uma postura de privilegiar mais os dados empíricos do que teorias.
A intenção é facilitar aos economistas detectarem quais os pressupostos que estão sendo usados (e nem sempre explicitados!) em artigos de Economia Comportamental ou de Psicologia Econômica. Muitas dificuldades de entendimento podem ser evitadas pela simples exposição de algumas convicções básicas. Muito se tem a ganhar no diálogo informado entre pessoas interessadas em avançar os conhecimentos sobre comportamentos econômicos!
Veridiana
Vai que é tuuuua Carol!
Ronaldo
Interesso-me bastante sobre o assunto. Tenho graduação em Psicologia e retomarei a de economia. Tenho muita vontade de estudar mais esse cassamento AC e Economia e, por enquanto, lendo sobre o trabalho da Carol Franceschini aliado ao conteúdo diversificado do portal já me lançam de cabeça ao assunto. Parabéns aos envolvidos!