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153211616Imagina que um rapaz que sofre de amnesia severa tem duas tostadeiras na cozinha. A tostadeira do lado direito funciona normalmente. A tostadeira do lado esquerdo dá um choque electrico sempre que é utilizada. O suspiro e a retração rápida da mão do rapaz indicam que o choque é doloroso. No entanto, uma vez que o rapaz não se recorda da experiência, não consegue antecipar o choque na manhã seguinte, e por consequência, mantém-se permanentemente indiferente entre as duas tostadeiras. Embora a utilidade de decisão que o rapaz obtém das duas tostadeiras seja a mesma, caso contrário ele não estaria indiferente entre elas; as utilidades experienciadas são bastante diferentes para cada uma delas; algo que ele só se apercebe quando as utiliza.

Discrepâncias sistemáticas entre utilidade de decisão e utilidade experienciada, tal como a investigação na área da teoria da decisão comportamental tem vindo a demonstrar, não se restringem a casos patológicos. Podem também ser observadas em decisores com funções cognitivas normais. Estas discrepâncias questionam a ideia de que as escolhas observadas são medidas directas de utilidade, e está a revolucionar a forma como olhamos para a sociedade e para as políticas públicas.

A importante distinção entre utilidade experienciada – a intensidade hedónica de um resultado; e utilidade de decisão – o peso atribuído a esse resultado numa decisão, foi também a origem da economia comportamental. A função de valor prospectiva foi um primeiro modelo de medida da utilidade de decisão (i.e., de que forma as pessoas fazes escolhas em condições de incerteza), e a distinção entre utilidade de decisão e utilidade experienciada originou uma avenida de investigação que procura compreender de que forma podemos alinhar as decisões das pessoas com os seus resultados correspondentes. Por outras palavras: de que forma podemos ajudar as pessoas a maximizar a utilidade resultante das suas decisões.

A teoria da utilidade de transação foi uma primeira, muito importante, aplicação do conceito de ponto de referência oriundo da função de valor prospectiva, para explicar fenómenos que não podem ser devidamente explicados pela teoria do consumidor proposta pela economia convencional. Ao introduzir o preço directamente na função de valor, através do conceito de ponto de referência, permitiu explicar porque é que os preços podem ser enganadores, e impedir os consumidores de maximizar a utilidade que obtêm das suas decisões. Permitiu explicar, por um lado, porque é que os consumidores compram coisas que não querem realmente; e por outro lado, porque é que os consumidores não compram produtos ou serviços que acrescentariam valor às suas vidas.

A partir daí, e ao longo das últimas três décadas, a investigação no campo da teoria da decisão comportamental tem vindo a demonstrar que as pessoas possuem preferências fluidas (i.e., os seus gostos estão sujeitos a variações significativas ao longo do tempo e através de diferentes circunstâncias); são pouco competentes a escolher no presente aquilo de que vão gostar no futuro (i.e., prever o consumo ou utilidade futura); e usam emoções transitórias como mecanismos preditivos da utilidade de longo prazo (i.e., as suas decisões são miópicas). Por outras palavras, e citando George Loewenstein: “demonstrou que a nossa percepção e reação à realidade é subjectiva. A forma como nos sentimos acerca de um determinado produto, ou até acerca da nossa vida, é pelo menos tão importante, e provavelmente muito mais importante, que as características objectivas do produto ou da própria vida.

Estas limitações e enviesamentos de decisão dos indivíduos constituem uma ruptura fundamental do agente homo economics dotado de racionalidade total e preferências estáveis, preconizado pela economia “convencional”. Por isso, devem ser tidas em consideração se quisermos desenhar políticas sociais e económicas efectivas, que possam contribuir para aumentar o bem-estar agregado das sociedades. De acordo com Rory Sutherland, um dos mais apaixonados defensores da economia comportamental, “a adopção de apenas alguns príncipios da economia comportamental por parte das empresas e dos governos pode ter um efeito significativo no bem-estar humano e no progresso económico durante os próximos 10 anos”. Alguns destes príncipios seriam:

1. Pequenas mudanças podem ter grandes efeitos.

2. A Psicologia é realmente importante.

3. As pessoas nem sempre pode explicar por que fazem o que fazem, ou o que querem.

4. A Preferência é relativa, social e contextual; não absoluta.

5. A Confiança nunca é garantida; o compromisso é verdadeiramente importante.

6. As pessoas “satisfazem”, em vez de optimizarem.

Estes príncipios não são completamento assumidos pelos modelos económicos convencionais de tomada de decisão, e essa é a razão pela qual Sutherland considera que “a próxima revolução será psicológica e não tecnológica”. O grande problema, e por isso, a grande oportunidade, é que o modelo de economia/sociedade que ainda persiste nos governos, escolas de gestão e, de certa forma na própria sociedade; é o simples modelo neo-clássico de há 100 anos atrás. Este modelo deixa de fora partes distinctivas da natureza humana: não nos diz nada acerca da confiança, da psicologia, do contexto, das relações, e da ética. A introdução de príncipios originários das ciências comportamentais nas esferas económicas e políticas irá mudar esse modelo, e possibilitar novos patamares de bem-estar e progresso social. Vai permitir alinhar as políticas públicas com a natureza humana, originando governos psicologicamente conscientes. A questão vital é acelerar esse processo. A disseminação destes príncipios tornará possível a construção de sociedades com sistemas de arquitectura de escolha que irão permitir alinhar as decisões dos consumidores/cidadãos com os seus interesses de curto e longo prazo.

6 Comentários

  1. Parabéns pelo artigo. Colocarei algumas questões direta ou indiretamente ligadas ao tema para reflexão:
    1- o valor utilidade relacionado a ideia de preço é um aspecto histórico, que se acentua somente após as revoluções industriais e ao capitalismo como modo de produção;
    2- a ideia de valor desassociada da ideia de preço é um fato ahistórico, pois a produção, independentemente do modo é a aplicação da força de trabalho social;
    3- não acredito em revolução psicológica, acredito em revolução ideológica, possível apenas, segundo o historiador Eric Hobsbawm, se houver ruptura com a força da tradição, ou seja com a força do passado;
    4- como esperar uma revolução psicológica, sem mudança no modo de produção capitalista, já que a superestrutura não se altera através da psicologia?
    5- no que se refere a revoluções tecnológicas, essas são muito mais prováveis, uma vez que não necessariamente precisam chocar-se com o sistema econômico e com a relação de classes existente e
    6- acredito que o comportamento do consumidor ( de forma segmentada é claro ) é um fenômeno histórico e manipulado por ferramentas muito poderosas como o Marketing e os diferentes e gigantescos canais de comunicação, que compõem, também, a superestrutura do sistema.

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  2. Diogo Gonçalves

    Obrigado Joaquim,

    Eu adicionaria os seguintes pontos:

    7 – A revolução psicológica diz respeito a levar em linha de conta os mecanismos psicológicos na definição de políticas publicas, e utilizá-los em benefício dos cidadãos e da sociedade. Algo que as empresas já fazem com os consumidores quando procuram lançar um produto.

    8 – O que a economia comportamental vem acrescentar diz respeito não tanto ao sistema de produção mas ao sistema de consumo e à forma como os consumidores/cidadãos fazem escolhas, e de que forma os governos podem ajudar/persuadir as pessoas a fazerem escolhas que reflictam os seus interesses de longo prazo e que contribuam para o seu bem-estar.

    9 – Estes mecanismos psicológicos correspondem também a uma evolução histórica, uma vez que foram adaptativos em termos evolutivos e de certa forma ainda o são. No entanto, a revolução industrial, a emergência do marketing e da sociedade de consumo, tornaram lucrativo a exploração destes mecanismos lucrativa para alguns agentes económicos, em prejuízo de outros.

    Um abraço, Diogo

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  3. O cara tá confundindo conceito de formação da utilidade com Marxismo barato.

    A economia comportamental dá ainda mais sustento ao individualismo capitalista.

    Tanto é que um dos seus principais tópicos é justamente o marketing.

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  4. Existe um porquê de governos não se alinharem em políticas públicas, a ausência de trocas diretas.

    É exatamente esta a função dos mercados, a troca de informações entre os agentes, a preferência reveladas. Estudar como os agentes chegaram as tais preferências é de fato relevante, para aperfeiçoar os mecanismos. Mas duvido muito que Estados tenham choques de gestão pública baseado em como indivíduos tomam decisões, Estado não tem como absorver a individualidade das curvas de utilidade, Estado atua em blocos, quando provocado.

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    • Diogo Goncalves

      Caro Gui,

      A Economia comportamental realmente reconhece que o marketing existe. A grande novidade que a Economia comportamental traz para a mesa é considerar que o marketing nem sempre actua em benefício dos consumidores, e muitas vezes explora até, os seus enviesamentos cognitivos e ou emocionais. Essa presunção legitima a intervenção dos governos no mercado, e origina uma nova ideologia chamada Paternalismo Libertário, onde os governos são encorajados a influenciar as escolhas dos cidadãos, se o fizerem em seu benefício, e sem nunca retirarem nenhuma alternativa pré-existente.

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