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No século XXI de Thomas Piketty, a desigualdade é o tema do momento: nos Estados Unidos, veio do movimento Occupy Wall Street o slogan “We are the 99%”, fazendo alusão à grande concentração de renda no 1% mais rico da população. No Brasil, o Ministério Público propôs novo teto para o funcionalismo federal, de R$ 39 mil. Com isso, o gasto do país com a remuneração (direta) de um ministro do STF passaria a ser equivalente ao gasto com 1.000 grávidas abaixo da linha da pobreza, beneficiárias do Bolsa Família. Este texto trata dessa questão, se aplicando, portanto, a remuneração do funcionalismo como um todo, e não apenas o caso dos juízes, que é apenas anedótico.

Como se o valor do teto não fosse alto o suficiente, muitas categorias de servidores construíram sobre ele uma laje, ou mesmo verdadeiras coberturas. Para disciplinar a matéria, o governo Dilma apresentou o PL 3.123/2015, que veda nada menos do que 37 truques usados para furar o teto constitucional.

Um monopolista frequentemente é aquele que atua em um mercado com barreiras à entrada e à saída. No mercado de contratação de servidores, há barreiras à entrada (o concurso público, que não é periódico e exige alto investimento para superar as exigências desproporcionais de conteúdo) e barreiras à saída (a estabilidade funcional). Assim, o trabalho do servidor não é fácil de ser substituído, criando terreno fértil para o rent-seeking e remunerações fora da realidade.

O valor do teto constantemente driblado já colocaria um servidor no 1% brasileiro (confortavelmente). O teto constitucional de 2016 é equivalente a 8 vezes o teto do INSS, 21 vezes o rendimento médio do trabalho ou ainda a 45 salários mínimos. Segundo estudo do Ipea (2013)1, os salários do funcionalismo como um todo seriam responsáveis por nada menos do que 24% de toda desigualdade de renda no país. Na última década, quase toda a queda na desigualdade gerada pelo Bolsa Família teria sido compensada por aumentos salariais a servidores. Daí o mérito da proposta de realismo remuneratório, fazendo com que o teto da Constituição seja finalmente cumprido.

O projeto é essencial porque existe um “efeito farol” a partir das maiores remunerações do funcionalismo, espécie de cascata informal que tende a criar pressões por aumentos sucessivos em várias carreiras a partir do topo da pirâmide. Embora a vinculação de salários seja proibida, há uma vinculação fictícia que baliza a remuneração de muitos órgãos por todo o país. Quando um deles cria uma maneira de burlar o teto, abre-se a porteira para que outras carreiras deem seu jeitinho de chegar ao sobreteto, seja por via administrativa, legislativa ou judicial.

Defensores públicos indenizados porque o colega saiu de férias, juízes que recebem auxílio para comprar livros, burocratas que embolsam jetons de estatais dependentes que não produzem um parafuso, ou procuradores que ganham honorários pelo trabalho para o qual já ganham salários fixos elevados 2. Esses são alguns dos casos de “indenizações” usados hoje para furar o teto e que seriam proibidas de fazê-lo pelo PL 3123 ou outros projetos. As possibilidades totalizam 37 incisos, tantos que a lista inclui, entre ajudas, adicionais e gratificações, até algo exótico chamado de “cascatinha”.

Diante desse cenário, que justificativas são apresentadas para as coberturas construídas acima do teto? As principais são a reposição de perdas inflacionárias, a necessidade de manter bons profissionais e até o nível de dificuldade dos concursos públicos.

Perda por inflação

A primeira justificativa é amparada pelo inciso X do art. 37 da Constituição, um resquício da época de hiperinflação que prevê indexação dos salários do funcionalismo. Esse contrato constitucional faz pouco sentido quando se considera que foi justamente com o combate à cultura de indexação que vencemos a hiperinflação. Para qualquer grupo, seria um privilégio no conflito distributivo ter a renda indexada à inflação enquanto outros grupos não possuem tal proteção. Vira um privilégio mais injustificável quando a renda deste grupo provém diretamente da renda de grupos que não estão protegidos. O teto constitucional é indexado, mas o Bolsa Família não.

Ainda, é preciso relativizar a perda de poder aquisitivo de quem ganha o sobreteto, por conta do que os economistas chamam de “viés de substituição”. Isto é, a possibilidade de trocas nos bens de consumo por conta de mudança nos preços relativos, que tende a ser muito maior na cesta de consumo dos que ganham mais.  Viajar para outro destino que não Miami se o dólar subir muito não é equivalente a ter de substituir a carne do almoço que encareceu.

Aqui, pode-se fazer um paralelo na teoria econômica com a conhecida concepção de “utilidade marginal decrescente do dinheiro”.

Vale lembrar também que muitas carreiras possuem ainda promoções automáticas ao longo do tempo, sem contrapartidas de produtividade, enfraquecendo o argumento da perda por inflação. Em qualquer caso, é natural que o valor real do salário varie ao longo do tempo, o que implica que os reajustes salariais não devem acompanhar a inflação. Em períodos de crescimento econômico, a produtividade do trabalho tende a subir e o salário real aumenta, o que implica que o salário nominal aumenta acima da inflação. Em períodos de crise, a produtividade do trabalho tende a cair, fazendo com que o salário real caia, ou seja, o reajuste nominal é abaixo da inflação. Indexar o salário à inflação implica congelar um preço relativo, o que não faz sentido e é prejudicial para a economia.

Manutenção de bons profissionais e o browsing out motivacional

Justifica-se também que os supersalários são necessários para manter bons profissionais, e mantê-los produtivos. Trata-se de uma falácia: entre o serviço público e a iniciativa privada não parece haver “porta giratória”, mas sim um movimento de mão única. Quase não se observa servidores saindo para as empresas, mas, a título de ilustração, somente o concurso de 2015 do TRT de Minas teve 130 mil inscritos.

Contrariamente ao senso comum, a moderna Economia do Trabalho não prescreve que maiores salários aumentam a produtividade. A partir de um determinado nível de remuneração, ocorre o chamado “crowding out motivacional” (deslocamento motivacional). Isto é, uma remuneração maior não levaria necessariamente a um desempenho melhor, considerados salários que já estejam em um patamar razoável.

Baseados em larga pesquisa acadêmica, expoentes da Economia Comportamental como Dan Ariely e Daniel Pink enfatizam a importância, para a produtividade e a motivação, de valores mais “intrínsecos”, como senso de propósito e de aprimoramento de expertise (a remuneração seria um valor “extrínseco”).

Esta visão foi pioneiramente definida por Deci (1971), que enfatiza o papel que uma política de remuneração pode ter em fazer com que os trabalhadores percam “interesse intrínseco pela atividade”. Para Pink (2009), ela tem o poder de “reduzir a motivação de longo prazo”:

Empresas, mas também governos e organizações não-lucrativas ainda operam com hipóteses sobre o potencial humano e performance individual que são obsoletas, não estudadas e enraizadas mais em folclore do que em ciência.

Para Pink, aumentos em remunerações altas “geralmente não funcionam e frequentemente causam danos”, em relação a seus efeitos na motivação e na produtividade. Tal tipo de política estaria “se tornando incompatível com muitos aspectos do trabalho contemporâneo”.  A exceção se daria em atividades “rotineiras”, passíveis de automação, em que não há interesse intrínseco a ser contemplado: ainda assim, mesmo nesses casos, a remuneração estaria condicionada à produtividade (como um vendedor que recebe comissões).

Mesmo onde pode haver uma correlação entre salários extremamente elevados e produtividade – como no sistema financeiro ou nos altos cargos executivos de grandes corporações – essas mega remunerações usualmente vêm acompanhadas de metas bem ousadas. Como é notório, metas de produtividade para atividades rotineiras ainda não são comuns no serviço público.

Daniel Pink, que já foi escolhido um dos 15 principais pensadores do mundo dos negócios 3 e foi assessor do ex-vice-presidente americano Al Gore, considera que a motivação no mercado de trabalho se apoia no tripé autonomia, domínio e propósito (autonomy, mastery e purpose), remetendo a uma conhecida teoria da psicologia, a da autodeterminação, de Deci e Ryan (2002).

O termo “domínio” se refere a “uma necessidade inata (…) de aprender e criar novas coisas”, enquanto “propósito” é definido como a necessidade de melhorar a própria vida e também o mundo. Dessa forma, motivadores mais poderosos do que a remuneração seriam a busca por conquistas e por crescimento pessoal. Um exemplo seria a manutenção da enciclopédia on-line Wikipédia, feita por voluntários.  No mesmo sentido, Karim Lahkani, da Harvard Business School, e Robert Wolf, do The Boston Consulting Group, argumentam que a motivação intrínseca, tida como “quão criativa uma pessoa se sente trabalhando em um projeto” seria o motivador “mais forte e mais dominante”.

Ariely (2008) argumenta que aspectos como esses seriam especialmente relevantes para políticas de RH em carreiras públicas. Não se trata de uma visão romântica, mas científica. Para Pink, esta análise está consoante com a visão de que a ciência econômica não é o estudo do dinheiro, mas sim o estudo do comportamento. Bruno Frey, um dos cinquenta economistas mais influentes do universo acadêmico 4, considera que a “motivação intrínseca é de grande importância para todas as atividades econômicas. É inconcebível que as pessoas sejam motivadas somente ou principalmente por incentivos externos”.

Essa visão difere de formulações mais tradicionais na economia, em que o trabalho é tido como uma “desutilidade”, e não como uma utilidade. No mesmo sentido, em Giambiagi (2015) fala-se em “renda psíquica”, aludindo à utilidade do trabalho no serviço público. Para Pink, a ideia de crowding out, ou deslocamento motivacional, “é uma das descobertas mais robustas das ciências sociais – e também uma das mais ignoradas”.

Por fim, a teoria econômica tem incorporado cada vez mais não só elementos da psicologia, mas também da sociologia. O Prêmio Nobel George Akerlof 5 (2010), amparado no conceito de “normas sociais”, defende que mais importante do que a remuneração para o desempenho do trabalhador é a identificação com o emprego e a missão do empregador.

Tais conclusões sugerem que, em muitas carreiras, a política remuneratória do governo é ineficiente, porque ele poderia obter os mesmos serviços pagando menos. Os especialistas em Economia Comportamental relativizam até mesmo o impacto de aumentos sobre salários já altos na satisfação individual de quem os recebe (discutido no blog aqui), o que indica também que este é um gasto ineficiente do ponto de vista do bem-estar social, urgindo o realismo remuneratório.

Dificuldade de concursos

Um último argumento dos servidores se relaciona ao que pesquisadores da Economia Comportamental chamam de “efeito licenciamento”, a ideia de que um “sacrifício” individual deve ser (bem) recompensado posteriormente. É comum ouvir, até em microfones de grevistas, que os servidores “merecem ser valorizados” porque passaram em concursos concorridos. É razoável que um candidato ao estudar se motive pensando que o esforço para conseguir a sua aprovação será recompensado com um bom emprego. O que não faz sentido é dar sucessivos aumentos ao funcionalismo por conta disso. A lógica correta é que os cargos são concorridos porque são bons, e não que devem ser bons porque são concorridos.

Considerações finais

O aumento das despesas com funcionalismo nos últimos anos contribuiu para a rigidez do orçamento, dificultando o ajuste fiscal. Ainda assim, a casta que fura o teto mobiliza de forma coordenada o lobby para manter seus privilégios, contra o PL 3123. O que deve ficar claro neste debate é que a sociedade está pagando mais do que tem condições e do que precisa pagar para manter esses funcionários produzindo. Sem realismo para essas remunerações, estamos matando, por inanição, políticas públicas e investimentos. Especialmente os voltados para os mais necessitados dos 99%.

Versão resumida deste texto foi publicada no jornal Valor Econômico, edição de 26/11/2015, sob o título “O PL do teto do funcionalismo”.

Referências

AKERLOF, G. A.; KRANTON, R. E. Identity Economics: how our identities shape our work, wages, and well-being. Princeton: Princeton University Press, 2010.

ARIELY, D. Predictably Irrational: The Hidden Forces that Shape our Decisions. New York: Harper Collins, 2008.

DECI, E. L. The effects of externally mediated rewards on intrinsic motivation. Journal of Personality and Social Psychology, 1971, 18, 105-115.

ÉPOCA. Juízes estaduais e promotores: eles ganham 23 vezes mais do que você. 12 de junho de 2015.

GIAMBIAGI, F. Capitalismo: Modo de Usar. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

MEDEIROS, M; SOUZA, P. Gasto Público, Tributos e Desigualdade de Renda no Brasil. Texto para Discussão nº 1844. Brasília: IPEA, Junho de 2013. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1844b.pdf.

PINK, D. H. Drive: The Surprising Truth about What Motivates Us. New York: Riverhead, 2009.

RYAN, R.; DECI, E. The Handbook of Self-Determination Research. Rochester: University of Rochester, 2002.

Notas:

[1] Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1844b.pdf. Os autores divulgaram recentemente novos resultados sobre a desigualdade de renda, usando dados do imposto de renda, o que permite incorporar outras rendas do setor privado, tendendo a reduzir a participação estimada da renda do setor público na desigualdade total.

[2] A edição de 12 junho de 2015 da revista Época apresenta um extenso catálogo das indenizações usadas para furar o teto no Judiciário e no Ministério Público.

[3]  http://thinkers50.com/t50-ranking/2013-2/

[4] Economist Rankings at IDEAS (RePEc): https://ideas.repec.org/top/top.person.all.html. Acesso em junho de 2014.

[5] Akerlof é também casado com a presidente do Banco Central americano (FED), Janet Yellen.

 

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