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Passados mais de 500 dias da declaração de estado de pandemia do COVID-19 pela OMS em 11 de março de 2020, indivíduos e governos ainda tentam entender o que pode facilitar ou dificultar comportamentos relacionados à contenção do contágio, como distanciamento social, uso de máscaras e vacinação enquanto o planeta continua girando e a vida continua acontecendo.

Cientistas comportamentais, por ofício, debruçaram-se sobre esses diversos desafios que envolvem diferentes esferas fundamentais da sociedade, como saúde, economia e bem estar. Afinal de contas, como maximizar a eficácia das respostas à essa nova realidade que se impõe?

Para atingir esse objetivo, é preciso identificar, analisar e superar diversas barreiras comportamentais.  Entretanto, um desafio específico do enfrentamento da pandemia é que a velocidade de contágio (a variável-chave a ser minimizada) não depende de um comportamento isolado, mas do acúmulo de dezenas de comportamentos e decisões de cada indivíduo, e das interações destes em sistemas sociais dinâmicos e complexos. Assim, uma definição estreita de comportamentos pode levar os “arquitetos de escolha” a ignorarem potenciais “spillovers” comportamentais, inclusive aqueles que possam provocar uma resultante no sentido contrário do esperado.  Assim, não é apenas a definição e implementação de ações comportamentais que não são triviais: a avaliação de seus resultados pode depender de consequências pouco intuitivas.

Considerando o desafio do distanciamento social, por exemplo: muito embora políticas públicas de restrição de mobilidade e confinamento tenham levado à redução de grandes aglomerações e da ocupação de escritórios corporativos, em várias instâncias indivíduos que se definem como obedientes às regras abriram exceções pontuais para o seu círculo social mais próximo – as      “pessoas de confiança que também estão se cuidando”. Estes pequenos encontros como celebrações íntimas de aniversário e casamentos aparentam ter sido decisivos para a sustentação do contágio em diferentes momentos da pandemia. Em um sociedade como a brasileira, de baixíssima confiança institucional, e grande dependência das redes familiares e sociais próximas, pode-se imaginar que este impacto tenha sido ainda mais relevante do que em sociedades anglo-saxãs ou nórdicas em que o convívio familiar é menos regular e frequente do que aqui.

A aceitação do uso de máscaras, em alguns lugares do mundo, também continua sendo um problema, especialmente em culturas em que seu uso é estigmatizado. Felizmente, aqui no Brasil, a aceitação no uso de máscaras é maior. Podemos especular que, em um contexto social e político em que a coordenação de ações governamentais foi inconsistente, e as ações de prevenção contra a pandemia assumiram um caráter identitário ou moral, o uso de máscaras acabou sendo um comportamento normalizado por ser fácil e por representar uma “sinalização pública de virtude” e de preocupação com o coletivo.

Por fim, à medida que a vacinação avança pelo mundo, diversas barreiras comportamentais podem surgir, desde a percepção que as pessoas têm sobre a importância de se vacinar até a arquitetura de escolha utilizada pelos governos para levar os cidadãos à vacina. Em janeiro, os autores publicaram um texto articulando algumas destas preocupações com barreiras comportamentais . Com efeito, ao longo dos últimos meses alguns “sludges” entraram no caminho da vacina como exigências diversas de comprovação de residência e falta de lembretes e informações para a tomada da segunda dose. Mas, aparentemente, a norma social pró-vacina estabelecida ao longo de décadas no Brasil prevaleceu (obrigado, mensageiro Zé Gotinha!) e a maioria esmagadora da população elegível concluirá sua imunização nos próximos meses.

Em resumo, os desafios comportamentais relacionados à pandemia e suas consequências ainda se estenderão por um longo tempo e os cientistas comportamentais vêm tentando responder e contribuir para a sua solução. Passados 18 meses desde o início da ação, já podemos fazer uma avaliação crítica da utilização de insights das ciências comportamentais, seus pontos fortes, limitações e pontos cegos.

 

1.Nudges sozinhos não irão curar o mundo

 

Frequentemente, cientistas comportamentais buscam a utilização de nudges como meio para promover a mudança de comportamento ou influenciar a tomada de decisão. No caso da utilização de nudges em políticas públicas, talvez o maior atrativo desse tipo de intervenção é a preservação da liberdade de escolha do indivíduo, afinal seu intuito é levar as pessoas a tomarem a melhor decisão “como julgado por elas mesmas”, sem promover restrições ou alterar incentivos econômicos de forma significativa. Embora seja reconhecido pela comunidade científica que nudges são intervenções de baixo impacto, eles ainda podem ser um tipo de intervenção custo-efetivo, o que é muito importante em termos de políticas públicas.

No entanto, ao atacar-se os problemas causados pelo COVID-19, em que são necessárias grandes mudanças de comportamento – ou no mínimo pequenas mudanças de comportamento por um número grande de pessoas em um curto espaço de tempo – talvez nudges não sejam a melhor solução.

No contexto de vacinação, por exemplo, pode se dizer que as evidências são mistas: um megaestudo encontrou bons resultados no uso de lembretes para aumentar o engajamento pela vacinação de influenza; no entanto, outro grande estudo promovendo loterias para a vacinação de COVID-19 teve resultados apenas marginais.

Assim, considerando os impactos sociais dos comportamentos individuais (as      “externalidades negativas” da economia) parece ser justificável a utilização de outros tipos de intervenções mais restritivas ou que trabalhem com incentivos econômicos mais diretos e explícitos para buscar comportamentos que atendam melhor aos interesses da sociedade, mesmo eventualmente contrariando preferências individuais. Aos que possam taxar estas restrições como autoritárias e paternalistas, lembramos o “princípio do dano”, do pensador liberal John Stuart Mill: “o único propósito pelo qual o poder pode ser exercido com razão sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar danos a outros”.

 

2. Ilusão de controle

 

Uma maneira de enxergar a vida em sociedade é por meio da lente da complexidade social, caracterizada pela observação de princípios como a adaptabilidade e de não linearidade nas relações de causa e efeito.

Nesse sentido, talvez, uma das grandes armadilhas na qual cientistas comportamentais tendam a cair seja a ilusão de que seja possível atingir um alto nível de “compliance” com determinados comportamentos como, por exemplo, a viabilidade de atingir um nível “ideal” de isolamento social (vis-à-vis a velocidade ou gravidade de contágio) ou, até mesmo, de que exista tal nível. Uma lição que o vírus e suas variantes continuam a nos ensinar é que, tendo liberdade para circular, em pouco tempo a função exponencial de contágio leva as sociedades de volta ao ponto de partida de março de 2020.

No início da pandemia, David Halpern, na qualidade de líder de ciência comportamental do governo do Reino Unido, advogou pela postergação de medidas de isolamento social com base em conceitos como imunidade de rebanho e fadiga comportamental, fenômeno esse bastante criticado por seus pares pela falta de evidência empírica de sua observação. Rapidamente, uma carta aberta foi criada e assinada por centenas de cientistas comportamentais espalhados pelo mundo criticando as bases teóricas comportamentais utilizadas como justificativa para essa medida. Inevitavelmente, os números de casos cresceu vertiginosamente no Reino Unido, levando o país a adotar, ainda que tardiamente, medidas mais restritivas de isolamento para sua população.  Mais de 500 dias depois do início da pandemia, a cansativa discussão sobre fadiga comportamental ainda está em aberto, mas a inconsistência de mensagens e ações (que se repetiu em outros momentos) abalou tremendamente a confiança da sociedade britânica na sua liderança – e consequentemente a adesão às medidas de restrição.

 

3.Heterogeneidade do problema (e das soluções)

 

Um dos problemas de se utilizar de uma visão mecanicista dos comportamentos é não levar em conta eventuais diferenças contextuais. De acordo com características específicas do contexto – e são vários os fatores que compõem um contexto – um mesmo problema pode demandar diferentes soluções.

No caso da pandemia do COVID-19, foi possível observar a heterogeneidade de políticas e soluções adotadas de acordo com as diferenças geográficas, demográficas, culturais ou religiosas entre diferentes países, com maior ou menor eficácia. Também foi comum observar mudanças nas políticas adotadas à medida que a pandemia evoluía, seja pelo efeito das medidas de isolamento social ou vacinação quanto pelo surgimento de novas ondas, provocadas por novas variantes.

Nesse sentido, é importante entender que nudges – ou qualquer outro tipo de intervenção – não são “balas de prata”: problemas complexos requerem a combinação de várias soluções. Voltando à visão da complexidade social, a adoção de uma determinada política pode gerar externalidades ou “spillovers” que, por sua vez, podem alterar sua eficácia ou, até mesmo, desencadear novos problemas.

Além disso, na utilização prescritiva de ciências comportamentais, como a criação e a disseminação de intervenções comportamentais como política pública, além da observação de heterogeneidades e externalidades,

Dessa forma, parece ser importante que cientistas comportamentais estejam atentos a variações na eficácia de suas intervenções ao longo do tempo e em contextos sujeitos a diferentes fatores ambientais. Por isso, devemos ter extremo cuidado, em especial em um evento politicamente sensível, ao montar e medir nossas intervenções com réguas suecas, neozelandesas ou cingapurianas.

 

Olhando adiante

 

Uma das grandes virtudes dos cientistas comportamentais é a observação de evidências empíricas. Por meio de estudos observacionais ou de experimentos, busca-se relações causais que possam explicar melhores maneiras de promover ou desestimular certos comportamentos.

Durante a pandemia, tem sido possível observar diversos comportamentos, benéficos e prejudiciais, seja por parte de indivíduos ou governos como em um grande e complexo experimento natural.

Espera-se que essa terrível pandemia chegue logo a seu fim e que seja possível extrair valiosas lições desse momento, fortalecendo o repertório de conhecimento da área das ciências comportamentais.

Embora a atuação de vários cientistas comportamentais durante a pandemia possa ser objeto de (auto)críticas, muitas intervenções, ações e estudos, desenvolvidos neste período crítico ou anteriormente, permitiram desenvolver melhores comunicações, mitigar os efeitos negativos do isolamento, e combater a disseminação de notícias falsas. E se nudges podem não ser a única solução, ainda podem ser de extrema valia para “empurrar” pessoas para comportamentos desejáveis e complementar políticas públicas mais amplas.

Futuras crises existenciais certamente virão como, por exemplo, as decorrentes das mudanças climáticas que irão capturar maior atenção das pessoas em um futuro próximo. Enfrentar essas      crises implicarão transformações maciças de comportamento. Por exemplo, estima-se que 59% da redução na emissão de gás carbônico no Reino Unido podem vir de mudanças comportamentais.

Os cientistas comportamentais precisam ser parte da construção de soluções de curto e longo prazo para os grandes desafios da sociedade global no século XXI. Para isso, devem aprender as lições trazidas pelo enfrentamento à pandemia da COVID-19.

 

Guilherme Lima é sócio-fundador da Ponto Futuro Consultoria e consultor no Banco Mundial (eMBeD – Mind, Behavior and Development). Mestre em Ciências Comportamentais pela London School of Economics e professor da ESPM no MBA em Economia Comportamental com foco em processos decisórios, bem-estar e felicidade.

 

 

 

 

Artur Mascarenhas é formado em Economia pela FEA-USP, com MBA em Economia Comportamental pela ESPM e atualmente é mestrando em Administração de Empresas pela FEA-USP, com pesquisa voltada a processos decisórios em grupo, seus fenômenos sociais e vieses.
Atuou por mais de 20 anos como empreendedor no mercado de franchising e atualmente atua como professor e consultor em projetos de Ciências Comportamentais Aplicadas. Participa ativamente do GEEC – Grupo de Estudos de Economia Comportamental, do Núcleo Decide da FEA-USP e é co-organizador da C³: Comunidade de Ciências Comportamentais.
Na ESPM, atualmente ministra a disciplina de “Metodologia Experimental e Desenho de Experimentos” do Master de Economia Comportamental e o curso de férias “Ciências Comportamentais para Comunicação e Engajamento”


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