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Governos podem se valer de insights das ciências comportamentais para fazer políticas públicas melhores – é o que propõe a abordagem dos nudges, proposta por Richard Thaler e Cass Sunstein em seu livro, best-seller originalmente publicado em 2008. Será que o mesmo vale quando governos estão diante de uma crise sem precedentes, apoiados em conhecimentos científicos ainda incipientes, e sem que haja uma coordenação global das ações?

A pandemia da Covid-19 tem algo a nos ensinar sobre essa pergunta. Ela é, antes de tudo, uma história de erros governamentais de todo gênero, como sabemos e como os trágicos e crescentes números de vítimas não nos deixam esquecer. Mas ela é também uma história sobre como o uso precipitado de evidências comportamentais pode levar a caminhos equivocados. Aqui, trataremos especificamente da resposta governamental baseada na abordagem dos insights comportamentais no Reino Unido, deixando outras falhas governamentais mundo afora, intencionais ou não, para que epidemiologistas, cientistas políticos, historiadores, e tribunais de responsabilização melhor as discutam no futuro.

O movimento das “políticas públicas baseadas em evidências” traz consigo uma série de discussões. Uma delas é se é válido agir, com base nas evidências disponíveis, ainda que não sejam as melhores possíveis, ou se é oportuno mais cautela, rigor metodológico e prudência. Em relação à pandemia, não foi diferente: houve vozes que propuseram que era o momento de agir já, com base no que se sabia a partir de outras epidemias[1]. Um outro grupo de pesquisadores, porém, deu sugeriu cautela, apontando que, talvez numa pandemia e questões de vida ou morte, fosse cedo para se chegar a conclusões de como proceder[2]. Um ano depois, quem tinha razão nesse debate? Com o risco de injustiça, assumamos o viés retrospectivo para revisitar esse debate, um ano depois.

Assim que a pandemia da Covid-19 se agravou no Reino Unido em março de 2020, país onde se situa a “Unidade de Nudge” mais conhecida mundialmente, o Behavioural Insights Team (BIT), foi proposta uma abordagem comportamental para lidar com o vírus: intervenções simples, baratas, focadas em compreender por que as pessoas não lavavam as mãos – e como governos poderiam conscientizá-las da importância desse gesto e assim estimulá-lo como medidas de prevenção. O esquema visual reproduzido a seguir mostra como os caminhos passariam por chamar a atenção e lembrar as pessoas, mostrando que a higienização mata o vírus, facilitando o acesso a álcool gel  e a locais de lavagem de mãos, e assim favorecendo a formação de um hábito capaz de reduzir a transmissão da doença.

Esquema comportamental do BIT de março de 2020. (Fonte)

Os britânicos, assim, adotariam uma estratégia essencialmente diferente daqueles países que até então estavam investindo em quarentenas, lockdowns, isolamento social, ou o uso obrigatório de máscaras – e assim o governo seria inclusive menos intrusivo sobre a liberdade das pessoas. Além disso, orientar as pessoas a lavar as mãos é, sem dúvida, uma medida governamental menos impopular e politicamente custosa do que ordenar que usassem máscaras ou que ficassem em casa.

Só havia um problema crucial: essas recomendações não tinham uma base científica sólida. Em vez de configurar a conduta mais relevante para a prevenção da Covid-19, a lavagem de mãos – embora seja uma boa prática sanitária em geral – está muito longe de ser a mais importante. E ao conferir tamanha ênfase a ela, outras medidas de prevenção mais relevantes foram “crowded out”, como diriam os economistas: ficaram fora do foco de atenção das pessoas. Ou seja, por melhor que seja o hábito da lavagem de mãos para a prevenção de diversas doenças, é possível traçar a hipótese de que, no caso da Covid-19, governos levaram as pessoas a se sentirem seguras ao incorporar esse hábito, quando, na verdade, não estavam.

Pouco mais de um ano desde o início da pandemia da Covid-19, aprendemos muito sobre a transmissão do vírus. Há, hoje, em meados de 2021, um razoável consenso científico de que a principal forma de transmissão é pelo ar, ainda que diversos protocolos governamentais tenham sido lentos em reconhecê-lo. E que, portanto, medidas como o uso correto de máscaras de qualidade por todas as pessoas, orientá-las a evitar a exposição em locais fechados, mal ventilados e cheios de gente, são as medidas de proteção fundamentais para se evitar o contágio da Covid-19.

Ao contrário de março de 2020, hoje existem inúmeros artigos científicos mostrando, com base em evidências, que o maior risco não é a transmissão por superfícies ou gotículas, mas por aerossóis – é o que se publicou recentemente nos periódicos médicos mais importantes do mundo, como o Lancet, JAMA ou o BMJ.

Não se trata apenas de uma questão científica menor, mas com implicações comportamentais fundamentais. Se a Covid-19 se transmitisse por superfícies, higienizar as mãos ou passar álcool gel em tudo seria mesmo a medida de prevenção mais importante. Se a transmissão fosse primordialmente por gotículas, seria o caso de priorizar a distância física de 2m das outras pessoas, ou evitar estar perto de pessoas tossindo ou espirrando, além de estimular a “etiqueta respiratória” ao tossir ou espirrar. Porém, sendo a transmissão aérea, tudo muda na prevenção: i) se as partículas virais saem de nariz e boca de pessoas assintomáticas quando estão meramente conversando, o uso correto de máscaras precisa ser obrigatório; ii) mesmo distâncias maiores em locais fechados podem não ser suficientes para oferecer proteção, e barreiras físicas do tipo acrílico são inúteis; e iii) atividades ao ar livre podem ser muito mais seguras que atividades em locais fechados e mal ventilados, mesmo que haja mais pessoas no ambiente externo.

Sabemos agora que medidas infelizmente muito comuns no Brasil, como a medição de temperatura na entrada de locais públicos (e sua versão piorada, a da medição no pulso) são ineficazes: pessoas pré-sintomáticas estão entre as principais disseminadoras do vírus. Muitas prefeituras investiram em lavar ruas, como se o vírus estivesse no solo, e não no ar, naquilo que hoje tem nome: “teatro de higiene”, tal como batizado por este texto da revista The Atlantic ainda em meados de 2020. Governos locais fecharam praias e parques, mas deixaram shoppings, bares e restaurantes abertos, como se a aglomeração nos primeiros fosse mais grave do que nos segundos (é justamente o contrário!).

Da mesma forma, a ênfase no álcool gel pode ter ocupado a “banda mental” das pessoas – as ciências comportamentais sabem que os recursos atencionais das pessoas são escassos, e prover uma informação como decisiva traz o “custo” de deixar outras de fora. Assim, o foco excessivo na higienização e mãos pode ter levado muita gente a não se preocupar com medidas realmente eficazes de prevenção, como usar máscaras corretamente ou trocar suas máscaras de pano, que oferecem pouca proteção, por mais eficazes máscaras do tipo PFF2. Olhando em retrospecto, é possível pensar se não perdemos tempo, recursos públicos e potencialmente muitas vidas orientando as pessoas incorretamente.

Sem alarde, tanto a OMS quanto o CDC dos Estados Unidos atualizaram seus protocolos em abril de 2021, talvez com certa vergonha em admitir que orientaram incorretamente as pessoas por mais de um ano. Não podemos culpá-los por isso: a verdade é que a comunidade científica demorou demais a perceber e a dar sentido a um crescente conjunto de evidências que vinha se acumulando.

Mais interessante ainda é que um dos legados da pandemia da Covid-19 é o melhor conhecimento sobre duas das doenças mais comuns que existem. Descobriu-se que talvez tenhamos compreendido de forma equivocada não só como o Sars-Cov2 seria transmitido, mas também gripes e resfriados comuns. Ambos também têm transmissão aérea – e a comunidade médica aparentemente não tinha clareza disso até 2021. Se você tiver interesse, pode conhecer essa fascinante história contada por Megan Molteni ou Zeynep Tufecki, em dois primorosos textos que são uma verdadeira aula sobre como o conhecimento científico avança na prática: aos trancos e barrancos.

Para nós, da comunidade de interessados em como aplicar a ciência comportamental a governos, ficam duas lições a serem consideradas no futuro, ambas ligadas a uma maior humildade intelectual diante de uma crise sem precedentes.

Em primeiro lugar, a tradução de achados científicos é melhor feita com prudência. Em 6 julho de 2020, uma carta aberta de cientistas tinha alertado a OMS que já havia muitas evidências da transmissão aérea. Mas em agosto de 2020, o site do BIT postava os resultados de um RCT sobre uma campanha de conscientização da lavagem de mãos em Bangladesh. Felizmente, depois disso, o foco do BIT passou a ser como estimular a vacinação, medida essa incontroversa entre profissionais de saúde para que se supere a pandemia[3].

Em segundo lugar, a arrogância pode custar caro. Muitos países tiveram resultados impressionantes na contenção das primeiras fases da pandemia usando um receituário que já era corrente entre epidemiologistas e infectologistas: uso universal de máscaras, quarentenas, políticas de testagem e rastreamento, restrições a aglomerações – com ênfase nos locais fechados.

A estratégia inicial do Reino Unido, porém, ao tentar destoar desse receituário tradicional, revelou-se um fracasso – e assim envelheceram muito mal as falas de David Halpern, líder do BIT, em defesa da “imunidade de rebanho” (estratégia que talvez nem com vacinas disponíveis seja plenamente factível). Hoje, a “CPI” que analisa a resposta britânica à pandemia investiga como foi possível que medidas sabidamente eficazes fossem substituídas por uma aposta temerária da “imunidade de rebanho”, resultando em tantas mortes evitáveis.

Concedamos um ponto inafastável: não tínhamos como saber no começo da pandemia que o ar, e não as mãos, seria a principal via de transmissão do vírus. Ou ao menos até julho de 2020 – desde então, persistir no erro não tem justificativa. De todo modo, num mundo complexo, numa pandemia inédita, com tanto desconhecimento sobre um novo vírus, por que uma das “Unidades de Nudge” mais admiradas do mundo optou por servir a uma política de governo tão controversa do ponto de vista sanitário?

As respostas talvez estejam num excelente relatório do próprio BIT: nós, burocratas, estamos sujeitos aos mesmos vieses cognitivos de qualquer ser humano: otimismo excessivo, viés de confirmação, ilusão de controle… ao mesmo tempo em que há um imperativo e uma responsabilidade de se agir com urgência. Num cenário de imprevisibilidade, porém, são ainda mais necessários a prudência e a correção imediata de rota diante de novas evidências[4].

Resta-nos torcer para que a comunidade interessada nas ciências comportamentais aplicadas em governos, possa aprender com mais essa lição sobre os limites do conhecimento humano. E, sobretudo, desenhar e propor intervenções que efetivamente funcionam: estimular a vacinação e o uso correto e responsável de máscaras, e orientar governos para que incentivem a passagem das atividades econômicas, culturais, de ensino, de lazer, etc., de locais fechados para ambientes ao ar livre ou muito bem ventilados.

 

Assista aqui ao vídeo informativo do Observatório Covid-19 BR sobre a transmissão da Covid-19 por via aérea.

 

 

Esquema comportamental da OMS de outubro de 2020. (Fonte)

 

Referências Bibliográficas

 

[1] VAN BAVEL, Jay J. Using social and behavioural science to support COVID-19 pandemic response. Nature Human Behavior. Vol. 4, 2020, p. 460-471. REDELMEIER, Donald A. & SHAFIR, Eldar. “Pitfalls of judgment during the COVID-19 pandemic”. The Lancet. Vol. 5, June 2020, p. e306-e308.

[2] IJZERMAN, Hans et al. (2020) Use caution when applying behavioural science to policy. Nature Human Behavior. Vol. 4, 2020, p. 1092-1094.

[3] A OMS tem atualmente um comitê, do qual faz parte Cass Sunstein, especificamente dedicado a esse tema. World Health Organization. (‎2020)‎. Behavioural considerations for acceptance and uptake of COVID-19 vaccines: WHO technical advisory group on behavioural insights and sciences for health, meeting report, 15 October 2020. World Health Organization. https://apps.who.int/iris/handle/10665/337335

[4] Esse é inclusive o tema em discussão num dos livros mais recentes também de Cass Sunstein, “Averting Catastrophe – Decision Theory for Covid-19, Climate Change, and potential disasters of all kinds”, publicado pela New York University Press em 2021. O livro mereceria uma discussão específica, inclusive quanto ao otimismo que o autor deposita nas análises de custo-benefício para a tomada de decisão em crises.

 

Ricardo Lins Horta

Doutor em Direito (UnB), Mestre em Neurociências e Bacharel em Direito (UFMG). Pesquisador visitante no Département d’Études Cognitives (DEC) da École Normale Supérieure, em Paris. Integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) federal.  Ocupou vários cargos de Assessoria e Chefia de Gabinete na Presidência da República, no Ministério da Justiça e no Conselho Nacional de Justiça, especializando-se em gestão de políticas de justiça e cidadania e em elaboração normativa. Tem interesse nas áreas de  Economia Comportamental,  Neuropsicologia, Neurodireito, Psicologia Evolucionista, Julgamento e Tomada de Decisão, e Políticas Públicas Baseadas em Evidências.  Autor do Guia de Prevenção da Covid-19 da ANESP

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1044955971496851

LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/ricardo-lins-horta-131268143/

Academia.edu: https://ufmg.academia.edu/RicardoHorta

ResearchGate: https://www.researchgate.net/profile/Ricardo_Horta2

Google Scholar: https://scholar.google.com.br/citations?user=LNtRS-IAAAAJ&hl=pt-BR&oi=sra 


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