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Por Flávia Ávila

Um trio pioneiro ao considerar as características comportamentais e contextuais para ajudar pessoas em realidades distintas — mas muito mais comuns do que imaginamos — fez história no último dia 14 de outubro, ao ser laureado com o Prêmio Nobel de Economia de 2019. As pesquisas realizadas pelo grupo nos últimos 20 anos provocaram reflexões profundas sobre o estado atual da ciência econômica na área de desenvolvimento, a forma como conduz sua pesquisa e as metodologias que utiliza.

Ao desenhar e implementar experimentos de campo em comunidades carentes da África e da Índia, Abhijit Banerjee, Esther Duflo, Michael Kremer, e pesquisadores da área inspirados por eles espalhados pelo mundo, estabeleceram um marco para o estudo da Economia do Desenvolvimento e ajudaram a embasar políticas públicas em várias regiões.

O Nobel de Economia de 2019 foi concedido a Banerjee e Duflo, do Laboratório J-Pal do MIT – Instituto de Tecnologia de Massachusetts, e a Kremer, da Universidade de Harvard, “por sua abordagem experimental para aliviar a pobreza global”.

O anúncio do Nobel é sempre uma surpresa. O que não causa mais espanto é o destaque que abordagens baseadas em visões alternativas da economia tradicional estão recebendo nos cinco últimos anos. Estudos baseados em experimentos e tópicos-chave explorados no campo de pesquisa da Economia Comportamental já tinham sido destaque em 2017, quando Richard Thaler, considerado um dos pais da área, foi laureado o prêmio “por suas contribuições para a economia comportamental”. Segundo o comitê uma de suas contribuições nas últimas décadas foi ter deixado a economia “mais humana”.

A grosso modo, a Economia Comportamental é uma junção entre economia, psicologia e outras ciências sociais, que estuda a natureza do comportamento humano, mas tem também a preocupação de analisar dados e coletar evidências. Ao questionar alguns pontos básicos da abordagem econômica tradicional, essa área tem comprovado cientificamente, nas últimas quatro décadas, que os humanos nem sempre (ou nunca) se comportam de forma 100% racional. Suas decisões são, muitas vezes, governadas por vieses cognitivos, pelo contexto, emoção, incentivos (nem sempre financeiros), entre outros fatores que influenciam diariamente todos nós, dos mais pobres aos milionários.

Os estudos de autores como o psicólogo Daniel Kahnemann e o economista Richard Thaler (vencedores do Nobel em 2002 e 2017, respectivamente) trazem reflexões e evidências que têm quebrado barreiras na academia, governo, terceiro setor e empresas privadas, indo além e propondo alternativas – efetivas e comprovadas – para minimizar erros sistemáticos que cometemos em situações cotidianas, muitas vezes inconscientes e de forma automática.

Foi o que Banerjee, Duflo e Kremer fizeram: usaram uma metodologia que, de forma brilhante, permitiu entender melhor o contexto em que vivem e como se comportam as populações em extrema pobreza frente a questões como educação, saúde e finanças. A partir desse entendimento, conseguiram formular políticas públicas baseadas em evidências empíricas.

Os premiados não fizeram isso fechados em seus departamentos universitários. Seu diferencial é a profundidade que alcançaram com o estudo de campo, transformando regiões inteiras de vilarejos e povoados em laboratórios de larga escala. Em outras palavras, tiveram a humildade de sair de sua zona de conforto e enxergar de perto a miséria global, para conceber maneiras de enfrentá-la.

O objetivo de Duflo, Benerjee e Kremer foi buscar evidências empíricas sobre maneiras eficientes de combater a pobreza, partindo da análise do que acontece na prática em contextos sociais específicos. Fizeram experimentos de campo, testando e explorando “ao vivo” os fatores que influenciam as escolhas da população em situações de escassez. Ultrapassando as barreiras do laboratório, seus modelos econométricos ou simulações Excel (sem dúvida metodologias importantíssimas como base para insights, desenho do experimento ou avaliações de impacto posteriores), eles fizeram sua pesquisa de campo em regiões muito pobres, distantes e de difícil acesso. Usaram métodos inovadores na economia, como os Randomized Controlled Trials (RCT), tradicionalmente adotados na pesquisa médica.

Um dos experimentos, por exemplo, foi feito em vilas na Índia para testar a eficácia de campanhas de vacinação. Randomicamente, os pesquisadores separaram as vilas em três grupos: um que continuaria fazendo a campanha como sempre, outro que receberia uma unidade móvel com profissionais de saúde e um terceiro que, além da unidade móvel, teria um saco de lentilhas para cada família que vacinasse seus filhos. O primeiro grupo manteve a cobertura de vacinação em 6%, no segundo essa cobertura aumentou para 18% e chegou a 39% na região com o incentivo das lentilhas.

Fonte: www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/2019/popular-information

Nesse sentido, é notável a contribuição que estudos do comportamento humano trazidos pela  Economia Comportamental, entre outras linhas de pesquisa, pode oferecer à Economia do Desenvolvimento. A EC propõe justamente uma metodologia mais empírica e experimental, usando os experimentos de laboratórios e campo como ferramenta, e incorporando descobertas da psicologia, neurociência e outras ciências sociais para explicar como um ser humano comum toma decisões.

Outro exemplo de pesquisa recente dos pesquisadores foi o artigo publicado este ano “Using gossips to spread information: Theory and Evidence from two randomized controlled trials” ,  que utilizou a fofoca como meio para aumentar a imunização das famílias (Banerjee et al, 2019). O experimento de campo foi feito em 521 vilas de Haryana, os pesquisadores observaram que o número de crianças vacinadas aumentou 22% nas vilas quando a noticia foi divulgada para pessoas específicas da comunidade apenas com a ideia de propagarem a informações para os demais moradores.

Como a Economia Comportamental ajuda a combater a pobreza

Em um trabalho conjunto com Roberta Muramatsu, economista, pesquisadora do economiacomportamental.org e professora do Mackenzie*, concluímos que há duas explicações para esse intercâmbio recente (e muito produtivo) entre as duas áreas, economia do desenvolvimento e economia comportamental. A primeira é a percepção cada vez maior de que os modelos tradicionais de desenvolvimento econômico não têm conseguido prever muito do que de fato acontece na prática, e ao não identificar quais são os gargalos, acaba-se gerando altos custos para o Estado com políticas que se mostram pouco efetivas no curto, médio e longo prazo.

Assim, quando um problema é identificado, uma solução implementada com base no senso comum, que não foi testada considerando características comportamentais, culturais e regionais, não necessariamente faz efeito, e seus resultados não aparecem na ponta.

Um bom exemplo de soluções comuns, mas pouco eficazes, que o trio de pesquisadores identificaram  refere-se à área de educação, e fez parte de um dos estudos citados no anúncio pelo comitê do Prêmio Nobel.

Realizado no Oeste do Quênia em meados de 1990, sob o comando de Kremer, o experimento focou nos desafios educacionais de comunidades pobres da região. Os pesquisadores observaram que essas escolas dispunham de poucos livros didáticos, ao mesmo tempo em que muitos alunos frequentavam as aulas com fome. Surgiu então o questionamento sobre qual dos dois tipos de política seria mais efetiva,  ampliar o acesso a mais livros ou oferecer merenda gratuita?

Se fôssemos analisar a questão dos livros didáticos pelo senso comum ou perspectiva da abordagem econômica tradicional, bastaria comparar as escolas com diferentes níveis de acesso aos materiais e levantar os resultados educacionais. Mas esse não é o método indicado para a Economia Comportamental, que busca entender como os indivíduos se comportam no seu dia-a-dia e o que influencia suas decisões no momento exato que elas são tomadas.

Restou à equipe de Kremer sair das salas e corredores de Harvard e viajar até o Quênia. Literalmente, sujar os sapatos. Lá, os cientistas firmaram parcerias com ONGs, o que lhes deu acesso e possibilitou conhecer de perto a realidade das comunidades pobres e de suas escolas.

O passo seguinte foi agrupar as escolas por características em comum. Dentre os grupos, selecionaram aqueles que incluíam as escolas mais carentes. Então, distribuíram de forma aleatória aquelas que receberiam os diferentes tipos de benefícios: para um primeiro grupo, nada foi feito; o segundo grupo recebeu mais livros didáticos, e no terceiro foi fornecida merenda gratuita. Só assim eles conseguiram descobrir qual das abordagens era a mais efetiva.

A conclusão do experimento foi que nem os livros didáticos, nem as merendas resultaram em melhorias nos índices educacionais. À primeira vista frustrante, esse resultado foi muito importante para evidenciar que o tipo de política proposto (livros didáticos, merenda), não surtia efeito. Assim foi preciso buscar outras abordagens. Foi o que fez, mais tarde, a equipe de Banerjee e Duflo, do MIT, na Índia. Utilizaram a mesma metodologia de campo em comunidades pobres, distribuindo aleatoriamente as escolas que fariam parte do grupo de controle e do grupo de intervenção. Introduziram um terceiro tipo de intervenção, que foi programas de reforço escolar para os alunos mais fracos. Puderam assim constatar que um dos problemas primários de educação nos países pobres não é a falta de recursos em si, mas uma falta de atenção às necessidades de aprendizado dos alunos.

Nas décadas seguintes, estudos semelhantes em áreas como saúde e finanças fizeram dos experimentos de campo o padrão ouro nos estudos da Economia do Desenvolvimento. Essa abordagem tem duas principais vantagens. A primeira é que os participantes, por não estarem conscientes de que fazem parte de um experimento, tomam decisões reais. Isso torna possível que os resultados do teste de uma nova política pública, por exemplo, possam ser aplicados in loco.

A segunda explicação levantada por Muramatsu e Avila (2017) para esse crescimento de pesquisas como as realizadas pelo trio é a abordagem comportamental. Para elaborar ou melhorar políticas públicas assertivas, é necessário compreender, em nível individual, como as decisões são tomadas pelas pessoas.

É nesse cenário que se destacam os experimentos de campo (por exemplo, os testes controlados randomizados) e a abordagem da Economia Comportamental, mostrando quais vieses podem influenciar na decisão de um estudante faltar às aulas, por exemplo. Sem dúvida, o grande desafio de qualquer política pública é a escala, e os experimentos fornecem e inspiram quem realmente está na ponta na criação de iniciativas mais efetivas e escaláveis, mas com base em uma visão mais realista do ser humano, evidências e dados concretos.

Outros experimentos desenvolvidos e resultados

  • Distribuir medicamentos gratuitos ou subsidiados?

Há vários produtos disponíveis para prevenir doenças que podem ser amplamente distribuídos, como comprimidos para combater vermes. São medicamentos que melhoram a saúde do indivíduo, mas também impactam na saúde pública ao quebrar o ciclo de transmissão de doenças infecciosas. Portanto, alguns desses itens são subsidiados pelo governo. Porém, alguns criadores de políticas públicas argumentam que os produtos devem ser distribuídos por uma pequena taxa, e não gratuitamente, para evitar o desperdício – há pessoas que pegam os medicamentos só porque é de graça e não os utilizam.

Porém, estudos de campo demonstraram que o ideal é baixar essa taxa o máximo possível ou não dividir o custo com a população. Isso porque o aumento das taxas foi claramente associado a uma queda na demanda pelos produtos. Um programa no Quênia a para distribuição de comprimidos contra vermes teve 75% de adesão com o medicamento gratuito. Com a cobrança de 30 centavos de dólar, a adesão despencou para 18%.

Em Zâmbia, a compra de um desinfetante caiu de 76% para 43% quando os preços aumentaram de 9 centavos para 25 centavos de dólar. A queda ocorre inclusive entre as famílias que mais poderiam se beneficiar dos itens, uma evidência que desfaz outro argumento comum dos formuladores de políticas públicas, segundo o qual aqueles que realmente precisam de um produto farão o esforço necessário para tê-lo.

https://www.povertyactionlab.org/policy-insight/impact-price-take-and-use-preventive-health-products

  • O microcrédito é sempre a solução?

O empreendedorismo é visto como uma alternativa para tirar algumas pessoas da pobreza. A criação do microcrédito veio justamente suprir a demanda das pessoas de baixa renda por crédito, oferecendo taxas e prazos mais adequados a sua realidade para que aproveitassem oportunidades de investimento. No entanto, pesquisas do J-PAL apontaram algumas limitações desse modelo.

A demanda por microcrédito, quando oferecido à população em geral, não foi tão alta quanto as expectativas das instituições. O acesso ao crédito ajudou empreendedores a investir em seus negócios, mas principalmente aqueles que já existiam, possuíam certa infraestrutura ou já eram lucrativos. Além disso, apesar de o microcrédito ter dado às famílias mais liberdade para tomar decisões financeiras, ele não aumentou a renda, o empoderamento das mulheres ou o investimento na educação dos filhos.

https://www.povertyactionlab.org/policy-insight/microcredit-impacts-and-limitations

  • Como ajudar jovens a encontrar emprego?

A alta taxa de desemprego entre os jovens é um problema em muitos países. Uma queixa comum entre essa população é saber onde ou como procurar trabalho. Uma revisão de estudos mostrou que oferecer assistência na busca de emprego ajudou os jovens a procurar oportunidades em lugares melhores e aumentou o esforço dessa busca.

Na Etiópia, oferecer aos jovens subsídios para o transporte, aumentando a mobilidade e permitindo que eles chegassem mais perto das ofertas de emprego, aumentou suas chances de conseguir um trabalho formal em 32%. Em uma região rural das Filipinas, dar vouchers para uma feira de emprego aumentou a probabilidade de que as pessoas procurassem emprego na cidade e ao mesmo tempo que fossem empregados no setor formal.

“Um Nobel contra o Blá Blá Blá”

Além de ajudar a desenvolver a área de Economia do Desenvolvimento, as proposições dos laureados tiveram impactos reais no combate à pobreza. O estudo de Banerjee e Duflo sobre reforço escolar, por exemplo, resultou em programas governamentais em larga escala, que beneficiaram mais de 5 milhões de crianças na Índia.

Todavia, a abordagem não serve somente para embasar novas políticas públicas, mas também para justificar o encerramento daquelas que se mostraram ineficazes.

Esse tipo de pesquisa prática, baseada em método científico e trabalho de campo, dá força para cada vez mais desenvolvermos políticas públicas a partir de evidências.

Não se trata de combater a pobreza por combater a pobreza, ou realizar um estudo teórico sem sair do escritório. Mas se basear em dados e usar os recursos corretos para transformar a realidade das pessoas.

Com seu brilhantismo e estudos de campo, Banerjee, Duflo e Kremer mostraram  — em larga escala —  o que pessoalmente acredito ser o MAIS IMPORTANTE:

a Economia Comportamental (ou Ciências Comportamentais no geral), não é nada sem uma visão realista de quem queremos ajudar, prática, ciência, dados… E muita humildade!

 

Referências

Avila e Bianchi (2015). Guia de Economia Comportamental e Experimental. Editora EC. Download: www.economiacomportamental.org/guia

Banerjee, A., Chandrasekha, A, Duflo, E., Jackson, M. (2019). Using Gossips To Spread Information: Theory And Evidence From Two Randomized Controlled Trials. Oxford University Press On Behalf Of The Review Of Economic Studies Limited

Muramatsu, R, & Avila, F. (2017). The behavioral turn in development economics: a tentative account through the lens of economic methodology. Brazilian Journal of Political Economy, 37(2), 363-380.

 

APÊNDICE

https://www.povertyactionlab.org/policy-insight/reducing-search-barriers-jobseekers

 


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2 Comentários

  1. Entender que contextos, pessoas e escolhas mudam de cultura para cultura é um grande passo.

    Para mim, aí começa a humildade: admitir que aquilo que acreditamos e fazemos pode não funcionar com grupo diferente, em outro lugar do mundo.

    Entre os muitos exemplos incríveis de aplicação da Economia Comportamental está o uso da fofoca para espalhar informação começando pelas pessoas mais influentes em uma vila indiana. Comparada com outros países, a Índia tem uma cultura mais coletivista e de alto contexto, o que inclui um maior gosto pela comunicação oral.

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