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Crime e Castigo é um romance do autor russo Fyodor Dostoyevsky. É considerado o primeiro grande romance de seu período “maduro” como escritor. O livro explora a angústia mental e os dilemas morais de Rodion Raskolnikov, um ex-estudante de Direito pobre de São Petersburgo, que formula e executa um plano para matar um penhorista sem escrúpulos e ficar com o seu dinheiro. Raskolnikov, para tentar defender a sua ação, argumenta que com o dinheiro do penhorista pode realizar boas ações que irão compensar o crime que perpetrou, além de livrar o mundo de um verme. Ele também argumenta que cometeu o assassinato para testar uma teoria sua, segundo a qual algumas pessoas são naturalmente capazes de tais ações, e que têm até o direito de executá-las. Várias vezes ao longo do romance, Raskolnikov compara-se com Napoleão Bonaparte e compartilha a sua crença de que o assassinato é permitido, quando visa um propósito mais elevado.

A descrição anterior de um dos mais famosos e influentes romances na literatura mundial é muito atraente. Uma análise psicológica envolvente e penetrante que vai além do crime – que no curso do romance exige punição drástica – para revelar algo sobre a condição humana: quanto mais nos intelectualizamos, mais aprisionados nos tornamos. A ideia de compreender as consequências pessoais de abraçar uma atividade intelectual é também muito atraente para alguém que passou os últimos anos de sua vida num ambiente acadêmico, como é o meu caso. Após decidir comprar o livro, o passo seguinte foi decidir que versão encomendar: a portuguesa ou a inglesa. Após alguns anos trabalhando num ambiente acadêmico internacional, em que o inglês é a língua oficial, consegui alcançar um bom nível de proficiência nesse idioma. No entanto, o português, a minha língua materna, é ainda a língua em que sou mais fluente como leitor. Por conseguinte, a decisão não parece difícil; se eu quiser tirar o máximo proveito da minha leitura devo encomendar a versão em português, certo? Não exatamente; os últimos anos de pesquisa em cognição humana começam a demonstrar que, como acontece com muitos outros insights comportamentais, quando se trata de fluência e compreensão verbal, o senso comum pode esconder o bom senso.

 Porque é que “tornar mais fácil” nem sempre é o ideal

A “Revolução do Nudging,” e a ideia de aplicar insights comportamentais às políticas públicas, veio embalada num mantra número um chamado “Make it easy.” Tornar mais fácil significa que, se quisermos que as pessoas (isto é, os cidadãos e consumidores) façam algo, precisamos tornar esse algo mais fácil para elas. Se quisermos que as pessoas comam alimentos mais saudáveis, precisamos colocá-los no refeitório, e torná-los mais fáceis de encontrar. Se quisermos que as pessoas economizem mais, precisamos fazer com que “poupar” seja a opção padrão, automatizar a poupança de dinheiro e associá-la a aumentos salariais, de forma a evitar a aversão à perda. Se quisermos que as pessoas tomem vacinas, devemos simplificar a informação e torná-la saliente, de forma a reduzir o esforço necessário para encontrar o médico e tomar a vacina.

Mas a pesquisa recente em psicologia cognitiva nos diz: quando se trata de aprendizagem e memória, tornar as coisas mais fáceis nem sempre é o ideal, porque a fluência torna as pessoas menos propensas a compreender e lembrar o que leem. Assim, ao contrário da ideia de que quanto mais fácil, melhor, tornar o material mais difícil de ler – aquilo a que os investigadores em cognição humana chamam de “disfluência” – pode realmente melhorar a compreensão. O que isso implica em termos de insight comportamental? Muito, como veremos a seguir, especialmente quando o comportamento que queremos influenciar acontece online.

Disfluência Visual: Quando o Feio Compensa

No mundo digital, a disfluência visual pode ser alcançada usando-se tipos de letra desconhecidos em escala de cinza de 60%. Mas, quando se trata de designs disfluentes, tudo o que torna a percepção visual menos automática – um layout inesperado, cores incomuns, ou um baixo contraste entre a imagem e o fundo – originará mais reflexão cognitiva.

Quais podem ser as consequências de tornar o material mais difícil de ler e levar as pessoas a refletir mais sobre o que leem?

Vamos imaginar que você quer viajar para um país africano. Para saber quais documentos são necessários para obter o visto, precisará consultar o site da embaixada.

Lá, você verá o seguinte anúncio:

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Ou o mesmo anúncio, num formato ligeiramente diferente:

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Fonte: Diogo Gonçalves

Em qual deles é mais provável que você lembre quais documentos levar para a embaixada? No primeiro exemplo, a informação foi apresentada em fonte Arial tamanho 14. Não só o tamanho da letra era maior, mas a fonte também era mais familiar e em preto puro (ou seja, 100% em termos de escala de cinza), aquilo a que chamaremos de “condição visual fluente.” No segundo exemplo, as informações não só foram apresentadas em tamanho menor e fonte desconhecida (Comic Sans MS tamanho 12), mas também numa escala de cinza de 60%, o que chamaremos de “condição visual disfluente.” A primeira resposta que vem à mente (ou seja, o nosso senso comum) é que usar uma fonte Arial 14 de cor preta pura, aumentaria a probabilidade de que você levasse os documentos certos para a embaixada e obtivesse o visto sem grandes atrasos.

O que investigadores da Universidade de Princeton demonstraram é que, também quando se trata de informação digital, o senso comum esconde o bom senso. Usando um exemplo diferente, relacionado com fatos específicos sobre espécies exóticas, os cientistas demonstraram que enquanto sujeitos na condição fluente (isto é, fonte Arial tamanho 14 100% negra) responderam corretamente a 72,8% das questões sobre as criaturas ficcionais, aqueles forçados a ler na condição disfluente (por exemplo, Comic Sans MS tamanho 12 em uma escala de cinza de 60%) responderam corretamente, em média, a 96,5% das perguntas.

Assim, o feio parece ter as suas vantagens. Apresentar informação numa fonte em cor mais clara, menos familiar e menos saturada, pode atrasar o cérebro do leitor, permitindo que ele se envolva com o material em um nível mais profundo, e melhorar a compreensão e retenção da informação. Em outras palavras: pode melhorar significativamente a percentagem de candidatos que aparecem na embaixada com todos os documentos necessários para solicitar o visto e, assim, permitir que a embaixada e os candidatos economizem tempo e recursos.

Disfluência Cognitiva: Como Fazer as Pessoas Pensarem?

Disfluência pode ser do tipo visual, mas também do tipo cognitivo. Para fazer com que as pessoas prestem atenção a informações importantes que normalmente negligenciariam, não só a fluência visual pode ajudar (por exemplo, destacando as informações mais importantes num formato difícil de ler ou num layout inesperado), mas também a falta de fluência cognitiva pode ser introduzida. Maior profundidade de processamento pode ser obtida se exigirmos que o leitor origine, em vez de consumir passivamente informação.

Estudos demonstraram que exigir que os participantes gerassem letras num par de palavras (e.g. ”salt:p_pp_r ”) durante a memorização, causa uma maior taxa de retenção dos pares de palavras do que quando os pares são apresentados na íntegra (e.g. “salt:pepper”). Este princípio pode ser estendido, com retorno significativo, à forma como elaboramos os contratos que determinam as condições de transação estabelecidas no mundo online e offline.

Uma forma de aplicar este princípio seria, por exemplo, exigir que os consumidores façam manualmente o cálculo aritmético da taxa de juro (em percentagem) do empréstimo a que se candidatam, em termos de dólares ou euros. Outra maneira seria converter a taxa de juros anual em uma taxa de juros mensal, ou até mesmo exigir que o consumidor insira as coberturas do seguro que ele gostaria de ser coberto e calcular o preço total do seguro, adicionando o preço de cada cobertura. Ao fazê-lo, os consumidores precisam se envolver mais profundamente com a informação contida em cada contrato, e pensar duas vezes antes de assinar um contrato do qual poderão se arrepender. Ao reduzir a fluência do processo de leitura e a assinatura de contratos (digitais ou não), protegemos as pessoas de fazerem escolhas das quais podem se arrepender mais tarde.

Além disso, olhando para o fenômeno pelo lado da oferta da economia, também contribuímos para o sucesso a longo prazo das empresas, garantindo que os consumidores compreendem completamente as implicações do que estão assinando e experienciem um senso de justiça em relação à empresa que lhes fornece um serviço.

Disfluência Deliberada e Objetivos da Informação Digital

No mundo digital e, em grande medida, no mundo offline, tendemos a pensar que altos níveis de fluência são sempre melhores: quanto mais fácil e mais rápido, melhor. No entanto, a literatura psicológica sugere que às vezes o difícil pode ser melhor, especialmente se quisermos fazer as pessoas pensarem mais cuidadosamente sobre o que está na tela, ou mesmo no papel.

A ideia principal que este artigo quer comunicar é que a disfluência funciona como um alarme meta-cognitivo que faz com que as pessoas processem a informação de forma mais cuidadosa. Assim, se quisermos que as pessoas desacelerem e processem as informações que leem com mais cuidado (por exemplo, advertências de saúde em maços de cigarros, informações sobre hipotecas, sinais de alerta), precisamos apresentar a informação com um “nível desejável de dificuldade.” No mundo digital, esse nível de dificuldade dependerá do objetivo da informação digital. Se quisermos que as pessoas completem uma transação (por exemplo, completem um check-in online) ou façam uma compra rápida (por exemplo, comprar um livro na Amazon), altos níveis de fluência são ideais e devemos tornar o processo o mais fácil possível. Se, pelo contrário, queremos que as pessoas reflitam sobre, e se lembrem do que leram, então devemos introduzir discrição, desacelerar a mente e permitir que o leitor se envolva com a informação.

A Atenção no Mundo Digital

Lisboa, a minha cidade natal e o lugar onde vivo atualmente, é uma bela cidade, cheia de água e de luz. Na margem do rio Tejo, onde este encontra o Oceano Atlântico, começa a estrada costeira. Seguindo o litoral, deixamos gentilmente a cidade e o rio para trás e chegamos ao Oceano Atlântico, em direção à rica e aristocrática cidade costeira de Cascais. Dirigimos através do contorno surpreendente do litoral, e a estrada também nos conduz através de uma série de curvas em S. Durante os anos 60 e 70, uma curva em particular, chamada de Curva do Mônaco por causa de um luxuoso restaurante vizinho com o mesmo nome, foi considerada a “Curva da Morte,” pois muitos motoristas desrespeitavam o limite de velocidade reduzida e acabavam saindo da estrada. Apenas durante a primeira década deste século o problema foi abordado convenientemente. Durante esse período, os fundos da União Europeia tornaram mais fácil a condução em Portugal, financiando a construção de uma das melhores infraestruturas rodoviárias da Europa. No entanto, naquela estrada em particular, pelo contrário, o governo português fez tudo o que podia para dificultar a condução, acrescentando obstáculos de velocidade e semáforos de radar, de forma a que os condutores travem e reduzam a velocidade antes de chegarem ao ápice das curvas.

Ao evitarmos a desconfiança no mundo digital, também podemos impedir que as pessoas tomem cuidado com o limite de velocidade reduzido e negligenciem as informações que lhes são apresentadas online. Isso afetará significativamente a qualidade de sua tomada de decisão, permitindo que as pessoas deliberadamente considerem ou não se devem optar por um determinado serviço, comprar um determinado produto, ou requerer um determinado seguro.

Dado o impressionante progresso da última década, podemos prever que a leitura digital irá ultrapassar a leitura em papel. Isso originará a chamada “lacuna da leitura digital,” devido ao fato de a geração atual de telas LCD tornar a leitura excessivamente fácil. O cérebro não precisa trabalhar duro o suficiente e, por isso, não conseguimos processar as palavras escritas nas telas e refletir sobre elas. Assim, e ao contrário da lógica econômica comportamental de facilitar a ação das pessoas, talvez precisemos atualizar nosso kit de insights comportamentais para o mundo digital e criar um ambiente de leitura digital que se assemelhe à antiga tecnologia do papel, onde um nível desejável de dificuldade de leitura origina suficiente reflexão cognitiva por parte do leitor e, consequentemente, uma tomada de decisão mais sábia. Aparentemente, quando se trata do mundo digital, “tornar difícil” pode ser o caminho certo para levar as pessoas a fazer que é correto.

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