Blog

A Economia Comportamental (ou, ampliando a definição, as Ciências Comportamentais) vem se mostrando, justificadamente, um tema em voga na imprensa geral e de negócios nos últimos anos. Suas aplicações vão desde “lifehacks” cotidianos de melhoria de produtividade até o desenvolvimento e implementação de políticas públicas.

Entretanto, um ponto bastante negligenciado nas discussões sobre o tema, em especial no Brasil, é a contribuição que a Economia Comportamental pode oferecer para o planejamento macro (números agregados da economia) e microeconômico (empresas e demais agentes).

Buscando iniciar a discussão destes temas, na virada de 2014 para 2015 publicamos um “paper” que constatava, de forma inequívoca, que as projeções de PIB do chamado “consenso de mercado” expresso no Relatório Focus do Banco Central erravam de forma sistemática e previsível.  A essência do documento pode ser extraída a partir do gráfico abaixo: Em 6 dos 8 anos analisados, o resultado real esteve fora do intervalo de projeções dos principais economistas de instituições financeiras, universidades e consultorias especializadas.

consensofocus2016

Conforme antecipamos em nosso “paper”, 2015 não foi exceção. Em 31 de dezembro de 2014, a mediana das projeções do Focus apontava para um crescimento de 0,5%, e a projeção mínima era de uma queda de -0,57% – muito distante, portanto, dos -3,8% efetivamente apurados.

Mais interessante é constatar que a experiência acumulada parece fazer pouco efeito, pois vemos o fenômeno se repetindo em 2016: o valor estimado pelo Focus no fim de maio é de retração de 3,83%, ou quase 1% de divergência com relação a previsão mediana original, e se aproximando do limite inferior de projeção.

Os vieses que alimentam estes erros são vários e fartamente documentados na literatura da Economia Comportamental:

  • Ancoragem – as previsões tomam como base exercícios realizados anteriormente, ainda que estes tenham se tornado irrelevantes. Assim, ainda que os ajustes sejam feitos na direção correta, eles frequentemente são insuficientes.
  • Conformação social – os participantes estão sujeitos a incentivos implícitos para não se distanciarem do consenso do mercado, comprometendo a diversidade e independência de inputs que seria desejável.
  • Otimismo ou “falácia do planejamento” – a probabilidade de eventos perturbadores ou “disruptivos” (tais como crises políticas, turbulências em mercados emergentes, colapso de preços de commodities, etc.) não é completamente considerada, resultando em projeções mais positivas do que o recomendável.

O insucesso do painel Focus em efetivamente oferecer ao mercado projeções acuradas mesmo dos indicadores econômicos mais básicos, além de provocar “schadenfreude” com relação a nossos colegas economistas, pode nos tentar a confiar que nossas capacidades preditivas sobre os nossos negócios sejam muito superiores. O consenso das ciências comportamentais, e, mais ainda, nossa experiência prática prestando consultoria a empresas de diferentes tamanhos sugerem exatamente o contrário.

Recentemente tivemos a oportunidade de trabalhar com diversas empresas que precisaram revisar sucessivamente as projeções de indicadores essenciais para a sua saúde financeira e operacional. Por exemplo, uma empresa do setor imobiliário que necessitou ajustar a cada trimestre suas projeções de unidades vendidas, que repetidamente se provavam demasiado otimistas. Ou uma empresa do setor de educação que, surpreendida pela inadimplência de diversos clientes, insistia em reprojetar seu fluxo de caixa assumindo que, a partir do mês seguinte, a situação começaria a se normalizar. Ou, ainda, um varejista digital, que precisava lidar com os sucessivos atrasos da entrada “em produção” de seu sistema de gestão comercial, com impacto nas receitas e despesas.

As consequências dos erros de previsão, em especial aqueles que assumem premissas irrealisticamente otimistas, se tornam ainda mais graves no cenário atual de escassez generalizada de liquidez. Apenas para citar algumas das mais óbvias:

  • Atrasos e timidez na implementação de ajustes na estrutura de custos e despesas;
  • Necessidade de linhas de crédito emergenciais e não planejadas, em condições desfavoráveis;
  • Aumento desnecessário de estoques de materiais e mercadorias, consumindo caixa e margens;
  • Postergação de receitas (ou de redução de despesas) em função no atraso no lançamento de produtos e sistemas.

Em resumo, uma empresa incapaz de fazer previsões realistas e de planejar suas atividades de forma coerente não conseguirá alocar seus recursos com eficiência, perdendo, portanto, a sua função econômica, e ficando sujeita à extinção.

Construir cenários fundamentados pela realidade, portanto, não deve ser encarado como um sinal de negativismo, ou fator de desmotivação, mas sim como o primeiro passo para a resolução de um problema fundamental de negócios. Afinal, para construir planos com chances reais de sucesso, é preciso primeiramente entender as lacunas que a organização precisa enfrentar, de forma que os recursos e ações necessárias sejam mobilizados.

Obviamente, erros não são apenas normais, mas esperados em qualquer exercício de planejamento e projeção – é a insistência no erro, e a relutância em reconhecê-los e corrigi-los que desafiam a pretensa racionalidade que deveríamos esperar dos líderes de organizações. Para entender esse fenômeno, precisamos entender que vieses como a ancoragem ou a “falácia do planejamento” muitas vezes são ampliados no trabalho coletivo das organizações.

Isto ocorre quando os processos e decisões de planejamento coletivos estão sujeitos ao que os cientistas comportamentais chamam de sinais informacionais e incentivos sociais perversos. Em linguagem comum, estes fatores fazem com que informações que contradigam o consenso estabelecido sejam descartadas (mesmo que corretas) do processo de planejamento e decisão, já que, ou seus portadores não tem confiança na sua validade, ou por que a relação custo X benefício pessoal de discordar do consenso recomenda que se fique em silêncio e se omita a informação. Estas regras sociais em muitos casos são inclusive implícitas, e fazem parte do conhecimento tácito da empresa, mas impactam profundamente a qualidade dos processos de planejamento e decisão de inúmeras empresas.

Por conta delas, não é fora do comum a diretoria de uma empresa construir uma projeção em que, ao fim e ao cabo, poucos (ou ninguém) acreditam, mas que se entende que agradarão determinados agentes de poder da organização: CEO, conselho, acionistas, etc. Pior, nestes casos mais extremos decisões estratégicas e investimentos são realizados com base em números que sabidamente não se realizarão!

O resumo do que eventualmente acontece com as organizações que se negam a enfrentar seus problemas com realismo me foi oferecido com precisão por um colega consultor especializado em turnarounds de empresas: “90% do nosso trabalho é entrar em uma empresa em dificuldades e tomar decisões calcadas no bom senso, que todos sabiam que precisavam ser tomadas há muito tempo, mas que ninguém fez”.

O cenário econômico extremamente desafiador do Brasil não se modificará tão cedo, de modo que os líderes das organizações precisam questionar com objetividade e franqueza os resultados de seus processos de planejamento, a partir de perguntas simples como:

  • Por que nossas projeções de vendas continuam mês a mês superestimando os volumes reais?
  • Quais despesas foram ignoradas ou subestimadas nas nossas projeções, e provocaram um estouro no orçamento?
  • Qual foi o atraso, com relação para a entrega dos projetos combinados – e qual o impacto nos resultados deste ano?
  • Quais as consequências destes erros de previsões para o planejamento do caixa? Que ações poderiam ter sido tomadas se tivéssemos projeções mais realistas meses atrás? O que teríamos feito de diferente?
  • Que premissas e processos precisamos rever para não repetir os mesmos erros no futuro?

Infelizmente, não há uma única pílula mágica que torne perfeitos os processos de planejamento e previsão de uma empresa. Ainda assim, é absolutamente viável e desejável para empresas empregarem esforços neste sentido, para que possam não apenas usufruir de previsões mais confiáveis, mas, principalmente, tomar decisões de negócio coerentes a partir delas.

Um requisito para a melhoria de decisões e previsões é o seu registro e a medição da sua acurácia de suas premissas e resultados. Por mais óbvia que pareça esta recomendação, os desvios sistemáticos resultantes das previsões do Focus indicam que o hábito saudável de registrar e revisitar uma previsão passada é bem menos disseminado do que nossa sugere a nossa intuição. Nas palavras célebres de Daniel Kahneman, “uma organização, independentemente do que mais ela produza, é uma fábrica de julgamentos e decisões”. Em qualquer outro tipo de fábrica, o controle de qualidade inicia-se pela medição e análise de defeitos e não-conformidades. Nas fábricas de decisões empresariais ainda há muito a evoluir para que reduzir a subjetividade na avaliação da qualidade de seus processos.

Um desafio particular das “fábricas de decisões” é que, em muitas ocasiões, seus produtos são “únicos” e de difícil validação: decisões que não se repetem, e que tem um longo tempo de maturação entre a tomada de decisão e a materialização de seus resultados. Como, então, minimizar a probabilidade de serem afetadas por vieses e dinâmicas de comportamento de grupos?

O objetivo para gestores genuinamente interessados na melhoria do seu processo decisório deve ser estabelecer processos e práticas que permitam identificar e desviar dos vieses e incentivos perversos mencionados anteriormente, e incentivar a independência e diversidade de opiniões e perspectivas.

Concretamente, este objetivo pode ser apoiado por uma série de práticas e disciplinas. Abaixo discutimos algumas alternativas de custo zero, e cuja a implementação depende apenas de alguma disciplina organizacional e da vontade de mudar processos estabelecidos.

“Liderança calada”

A literatura que estuda a dinâmica de grupos é farta em exemplos que demonstram que nas organizações, ao contrário da aritmética, a ordem dos fatores (quem expressa seus pontos de vista primeiro) altera o produto (a decisão final). Invariavelmente, quando a posição do líder (hierárquico ou em status) é expressa desde o início de uma discussão, informações e pontos de vista contraditórios são omitidos, mesmo que possam levar a um entendimento melhor da questão, já que o líder tende a ser percebido como catalisador do consenso, que, uma vez estabelecido, torna-se difícil de ser desafiado.

Assim, organizar deliberadamente o processo decisório para os membros com menor senioridade consigam expor as suas opiniões e informações antes que um consenso se estabeleça aumenta a diversidade de opiniões, e reduz a possibilidade de omissões importantes.

Outra aplicação poderosa do silêncio em processos de planejamento e decisão é fazer com que estimativas quantitativas (PIB, volume e crescimento de vendas, prazos de lançamento, etc.) sejam realizadas individualmente, e por escrito, antes de serem discutidas abertamente. São dois os objetivos neste caso: evitar o efeito da ancoragem arbitrária pelo primeiro número a ser lançado, e tentar capturar, a partir do entendimento das estimativas mais extremas (que devem ser justificadas antes das demais), informações que não sejam de conhecimento de todos, p.ex.: segmentos de mercado pouco explorados, fatores de risco não considerados, etc.

Pré-mortem

O “pré-mortem”, descrito originalmente por Gary Klein e Daniel Kahneman, é um exercício em que participantes de um processo decisório ou projeto imaginam e descrevem um cenário futuro (porém realista) em que o resultado foi um fracasso. Mais do que um exercício de negatividade, os participantes têm que detalhar as razões, não consideradas no planejamento inicial, que fizeram o projeto “fracassar” hipoteticamente: – quando os eventos determinantes ocorreram? Quais foram as suas causas? Como eles poderiam ter sido evitados?

O “pré-mortem” torna explícito para o grupo riscos que estão sendo subestimados ou ignorados, possíveis fontes de estouros de orçamento, ou de perda de receitas. Em resumo: os fatos e possibilidades desagradáveis que tendem a ser deixado de lado ou minimizados nos processos de planejamento e decisões coletivos, devido aos vieses e dinâmicas de interação social. Ao ser confrontado “ex-ante” com cenários verossímeis de fracasso, o grupo tem a possibilidade de evitar que eles se materializem, buscando alternativas para minimizar e mitigar riscos, ajustando metas e planos de ação, etc.

Com diferentes nomes e graus de disciplina, várias empresas já fazem exercícios de “pós- mortem”, ao final de um projeto ou investimento, nos quais se busca-se avaliar quais previsões e decisões foram acertadas, quais tiveram resultados diferentes do planejado e porquê, buscando registrar os aprendizados para aplicação em situações semelhantes no futuro.  Por mais que o “pós-mortem” seja um exercício louvável e útil, o “pré-mortem”, se realizado com sinceridade, desafia as premissas de projetos e decisões empresariais quando elas ainda não foram executadas, reduzindo a probabilidade de erros de planejamento.

Mudança de papéis e perspectivas

Apesar de exigir algum esforço de imaginação, buscar analisar as alternativas a partir da perspectiva de outros agentes pode explicitar vieses e compromissos do status quo com decisões passadas, que muitas vezes perderam o sentido. A anedota mais clássica do poder desta prática foi contada por Andy Grove, o ex-CEO da Intel, recentemente falecido. No início dos anos 80 a Intel dividia seus esforços entre os mercados de microprocessadores e de memórias, no qual perdia dezenas de milhões de dólares por ano. Após mais de um ano de deliberações e indecisões, Grove perguntou para o chairman Gordon Moore: “ Se nós fossemos demitidos, e amanhã entrassem novos gestores por aquela porta, que decisão eles tomariam?”. Moore respondeu sem hesitar: “eles tirariam a Intel do mercado de memórias”. “Então que tal sairmos por aquela porta, entrarmos de novo, e tomarmos nós mesmos essa decisão?”, concluiu Moore. Assim o fizeram, libertos de compromissos passados, e nos anos seguinte a Intel, atuando com foco no mercado de microprocessadores, tornou-se uma das maiores empresas do mundo.

Outro método específico de mudança de perspectiva é adotar a visão externa sobre um tema, no qual se assume a visão de alguém externo à organização, com a visão apenas de outputs, mas não dos detalhes ou da narrativa de planejamento. Esta perspectiva normalmente revela quais premissas podem estar excessivamente otimistas, e convida para o seu questionamento e aprofundamento. Por exemplo: “Nenhuma empresa nesta indústria jamais conseguiu um retorno sobre ativos acima de 15%, o que nos faz pensar que conseguiremos fazê-lo no ano que vem?”.

Estimativas e previsões probabilísticas

Uma ferramenta para induzir flexibilidade é incorporar, nos exercícios de planejamento, estimativas para métricas-chave que considerem cenários “extremamente pessimistas” e “extremamente otimistas”. Ainda que frequentemente nossa visão de “extremos” seja insuficiente, este exercício incentiva a empresa a antecipar a busca de alternativas e a incorporar flexibilidade em suas ações e planos, em um grau maior do que normalmente se obtém seguindo orçamentos rígidos. Por exemplo, as reflexões, decisões e planos de ação podem ser muito diferentes se considerarmos que “as vendas anuais serão de R$ 75 milhões”, do que “as vendas anuais ficarão entre R$ 50 e 90 milhões, com 80% de certeza”.

 

Concluindo, as ideias e sugestões propostas acima não tem a pretensão de serem exaustivas, ou mesmo suficientes para eliminar os problemas e desafios que os nossos vieses comportamentais trazem para o planejamento e previsões empresariais. Ao contrário, o seu objetivo é apenas iniciar e estimular a reflexão sobre este tema de grande impacto para a sustentabilidade de longo prazo das organizações, e ainda ignorado pela vasta maioria das empresas brasileiras. O maior conhecimento e prática de ferramentas comportamentais terá o potencial de aumentar a eficiência e efetividade de empresas e executivos, aproximando-os do “agente econômico perfeitamente racional” preconizado pela teoria econômica clássica.

Adaptado de posts publicados no LinkedIn em 26 de fevereiro e 14 de março.

Leituras adicionais sobre o tema:

KAHNEMAN,D.Rápido e Devagar – Duas Formas de Pensar. São Paulo: Objetiva, 2011. 624p.

TETLOCK, P.E.; GARDNER, D. Superprevisões: a arte e a ciência de antecipar o futuro. São Paulo: Objetiva, 2016

SUNSTEIN, C.; HASTIE, R.Wiser: Getting Beyond Groupthink to Make Better Decisions. Boston: Harvard Business School Press, 272p.

SOLOL, J.; MILKMAN, K.; PAYNE, J. Outsmart your own biases. Harvard Business Review, Boston, maio 2015

Envie seu Comentário