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Aracaju a capital do nordeste brasileiro com a maior densidade de carros por habitante, a décima segunda no geral (1). Uma mistura já conhecida no Brasil de falta de planejamento urbano e descaso com o transporte público, somados a particularidades geográficas da capital sergipana (grande parte da cidade foi construída sobre manguezais aterrados), tornam a mobilidade urbana um dos temas mais caros aos moradores da cidade. Com uma plataforma eleitoral que atendia essa demanda, o atual prefeito da cidade foi eleito em 2012 prometendo implementar o sistema de BRT na cidade. Tal promessa eleitoral começou a se concretizar no início deste ano (outro ingrediente conhecido no Brasil: obras em anos eleitorais), com a implementação de faixas exclusivas para tráfego de ônibus e taxis em serviço nas vias que comportam tal exclusividade, aquelas com mais de duas faixas, e faixas preferenciais para os veículos do sistema em outras vias com maiores restrições. O objetivo deste projeto é fluidificar o tráfego de veículos de transporte de massa, tornando-os mais atraentes. A prefeitura sugere que os percursos realizados de BRT se tornarão 20% mais rápidos que o transporte público convencional.

A adoção do sistema em Aracaju está encontrando uma série de obstáculos, sendo que o maior deles provavelmente é a falta de planejamento. Atualmente, sua implementação encontra-se suspensa pelo Ministério Público, que exige da Superintendência Municipal de Transporte e Trânsito (SMTT) uma série de medidas antes que o sistema seja colocado em prática. Mas este texto não focará no BRT e de sua eficácia como forma de transporte público, embora uma análise das estratégias de incentivo ao uso de transporte público seja um tema bastante atraente para a Economia Comportamental (2). Quero escrever sobre uma percepção minha a respeito de uma particularidade que ocorreu no processo de implementação (e consequente retirada) de multas para motoristas que utilizassem as faixas exclusivas para o BRT.

Entre 21 de março, quando as faixas azuis exclusivas do BRT foram pintadas, até o dia 4 de abril, motoristas foram advertidos pela SMTT que o trânsito em faixas exclusivas seria multado em R$191,54, adicionando 7 pontos em sua Carteira Nacional de Habilitação. Uma infração gravíssima. Neste período, a superintendência posicionou viaturas oficiais em trechos estratégicos da cidade para que os motoristas pudessem visualizar que haveria fiscalização e que as multas seriam aplicadas. Eu sou usuário pesado do sistema de tráfego urbano aracajuano, dirigindo uma média de 30km para minha jornada diária ao trabalho e percebi claramente a estratégia do governo local. Nos primeiros dias, o trânsito se tornou mais lento que o comum nas horas de pico e vários carros que trafegavam nas agora “faixas exclusivas” foram abordados pelos agentes da SMTT, que informavam que tal conduta seria passível de multa em alguns dias. Pude perceber, também, que o sistema em poucos dias foi se acomodando: embora o trânsito continuasse mais pesado e lento, a faixa exclusiva do BRT passou a ficar cada vez mais livre e os condutores de veículos passaram a utilizar somente as demais faixas das vias (vale lembrar que nem todas as faixas do BRT são faixas exclusivas; existem as faixas preferenciais). Entretanto, a fiscalização jamais foi posta em prática; os planos da SMTT foram suspensos por ação do Ministério Público Estadual e nenhuma multa foi aplicada a condutores “infratores”. O BRT aracajuano encontra-se atualmente em um limbo operacional. Mas e como os condutores reagiram a isso? O que acontece quando uma conduta costumeira é ameaçada de punição? E o que acontece quando essa punição não é aplicada?

Em um artigo intitulado “The difference between punishments and rewards in fostering moral concerns in social decision making” (a diferença entre punição e recompensa na criação de preocupação moral na tomada de decisão social, em tradução livre)(3), Laetitia Mulder investigou o efeito da punição na determinação de normas sociais relativas aos comportamentos punidos. A partir de dois engenhosos experimentos, a autora argumenta que os efeitos da punição transcendem efeitos financeiros/instrumentais e também influenciam o estabelecimento do que é considerado certo/socialmente aprovado por um grupo de pessoas. Esse efeito seria diferente do observado com recompensas, que além de determinar as já mencionadas consequências instrumentais, acabariam por sinalizar apenas a voluntariedade de certas regras. Considere a seguinte situação: você é convidado a participar de um jogo e recebe 10 fichas, cada uma com um valor de R$ 5. Você recebe a informação de que existem outros três participantes com você neste jogo e que vocês deverão decidir, individualmente, quantas fichas depositarão em um projeto conjunto. Cada ficha depositada neste projeto conjunto será multiplicada por um 1,5 e dividida entre todos os jogadores. Assim, se todos decidirem aplicar suas 10 fichas, o projeto renderia 60 fichas (40 x 1.5), o que geraria um payoff individual de 15 fichas, R$ 75 para cada participante. Mas ainda mais interessante seria se todos os outros aplicassem seus recursos no projeto pessoal, enquanto você mantivesse as suas em sua conta pessoal. Desta forma, você terminaria o jogo como suas 10 fichas mais aproximadamente 11 fichas do projeto conjunto rateado (R$105). Evidentemente, se todos seguirem esse raciocínio, não haverá nada para ser dividido no projeto conjunto e todos terminarão o jogo apenas com sua dotação inicial. E você, o que você faria? Quanto direcionada para o projeto conjunto e quanto manteria em sua conta pessoal? Esse é o delineamento básico do Jogo do Bem Público (4) e é uma situação bastante interessante para investigar o comportamento humano em situações onde o interesse coletivo (o “projeto conjunto”) está em conflito com os interesses individuais (as dotações individuais). Adicionalmente, a autora manipulou a seguinte instrução: para um grupo de participantes, foi informado que em situações como aquelas, membros de grupos geralmente punem aqueles que contribuem abaixo de um determinado valor para o projeto conjunto, mas que, para manter o experimento simples, isso não seria feito no presente estudo. Outro grupo recebeu a mesma informação, mas com um fraseado de recompensa: geralmente membros do grupo recompensam aqueles que contribuem acima de um determinado valor, embora isso não aconteceria no presente caso. Houve ainda um grupo sem nenhuma informação sobre punição ou recompensa.

Em um segundo estudo, a autora encontrou que além de observar efeito direto da indicação da punição sobre a sensação de obrigação moral, participantes também julgaram como sendo moralmente repreensíveis pessoas que repartiram recursos de forma contrária à sugerida por punições (mas não por recompensas). Ela conclui que seus resultados indicam que a punição resulta em maiores preocupações morais que a recompensa. Outra forma de interpretar os resultados seria considerar que contingências punitivas acabam por especificar contingências sociais punitivas, enquanto que contingências reforçadoras não parecem ter o mesmo efeito colateral, pois não tornam o comportamento recompensado mais virtuoso. Quando estabelecemos que quem assiste filmes piratas deveria pagar uma multa, estamos estabelecendo que assistir filmes piratas é moralmente condenável. Mas quando estabelecemos recompensas para quem assiste filmes pelos canais legais, não estabelecemos nenhuma contingência social especial para assistir filmes piratas.

Voltemos para Aracaju. Com o imbróglio do BRT instalado na cidade, percebo informalmente algo semelhante ao que Mulder (2008) obteve em seus estudos: a faixa exclusiva para os veículos BRT está perceptivelmente mais vazia do que antes da tentativa da implementação (embora, obviamente, mais cheia do que no período em que multas ainda seriam aplicadas). É como se a própria ideia de que andar naquelas faixas seria passível de multa tivesse criado uma contingência social que desaprova o uso das faixas para circulação. Adiciono que nas vezes em que me flagrei conduzindo nessas faixas, mesmo não estando cometendo nenhuma infração de trânsito, tratei rapidamente de voltar para as faixas de tráfego normal, sentindo um misto de vergonha e culpa. A forma como nos sentimos é um excelente meio de acesso às contingências de reforçamento que influenciam nossos comportamentos e relatos de culpa e vergonha estão associados a controle social coercitivo.

Um tópico que sempre chamou atenção de economistas e psicólogos foi a relação entre incentivos financeiros (ou multas, desincentivos) e a conduta humana. De uma forma simplista, uma pessoa pode pensar: quer que determinado comportamento aumente de frequência? Recompense-o! Quer que as pessoas deixem de fazer algo? Multe-as! O cerne dessa discussão, no entanto, está na identificação de que não há uma moeda universal com a qual podemos incentivar ou desestimular ações. Já vimos que estabelecer punições para ações tende a criar uma contingência social paralela que persiste a despeito da retirada da multa, mas estabelecer prêmios e recompensas para determinadas condutas parece ter também efeitos deletérios, no tocante a motivação intrínseca, nome dado à motivação “natural” das pessoas em realizar uma tarefa. Gneezy e Rustichini (2000a) apresentaram resultados de um estudo de campo em que estudantes americanos de ensino médio se esforçaram mais para obter recursos em campanhas de arrecadação porta-a-porta quando não recebiam recompensas financeiras do que quando recebiam um pequeno prêmio. Quando o prêmio oferecido foi grande (provavelmente grande o suficiente para superar os benefícios não pecuniários de estar agindo por uma causa nobre), os estudantes se esforçaram mais. Talvez o mais famoso caso de interação entre incentivos financeiros e sociais ocorreu no experimento dos mesmos autores em uma creche israelense (Gneezy e Rustichini, 2000b). Nesse estudo, os experimentadores estabeleceram uma multa de aproximadamente U$ 3 para pais que atrasavam para buscar seus filhos e seu efeito foi dramaticamente oposto ao esperado. O número de pais que se atrasavam para buscar seus filhos aumentou. Nem mesmo a retirada da multa reverteu o infeliz resultado. Podemos interpretar que havia uma norma que determinava punições sociais para atrasos dos pais (olhares punitivos dos cuidadores; se perceber como um pai pouco atencioso, por exemplo) que foi arruinada pela introdução de uma multa em dinheiro. O valor relativamente baixo da multa pode ter feito com que os pais passassem a enxergar seus atrasos de forma menos ofensiva, percepção que permaneceu mesmo depois da retirada da multa.

Como conciliar os resultados então de Mulder (2008) e Gneezy e Rustichini (2000b)? Em um caso uma punição está comunicando uma norma social que permanece ativa a despeito da inexistência da punição per se, e no outro, ela parece implicar que o malfeito não é tão mal assim.

A pergunta que surge é: quais são os fatores que moderam a relação entre uma punição e sua expressão simbólica, ou sua capacidade de estabelecer controle normativo de comportamento? Mulder (2016) sugere que a maneira como uma punição é comunicada e sua severidade são determinantes para como ela é percebida. Com o objetivo de diminuir a frequência de atrasos na devolução de livros, uma biblioteca pode decidir implementar multas de, digamos, R$ 1 por dia atrasado. Essa multa pode ser comunicada aos usuários de pelo menos duas formas: atrasos na entrega de livros fazem com que usuários fiquem sem acesso ao livro e isso é inadmissível, ou que o valor arrecadado com as multas será usado para criar uma reserva de livros para impedir que usuários fiquem sem acesso aos livros atrasados. Quando enfatizamos que a multa paga pelo usuário da biblioteca é uma forma de punir a transgressão de uma norma social, podemos classificá-la como punição retributiva; já se enfatizamos o caráter reparatório da mesma, classificamos como uma punição compensatória ou restaurativa. Estudos indicam que punições comunicadas como transgressão a normas (mais do que aquelas comunicadas como compensatórias) podem se beneficiar com este efeito “colateral”. No caso de Aracaju, e mais amplamente, no caso do Brasil, as multas de trânsito são percebidas como punições a comportamentos antissociais. Aparentemente isso pode ter facilitado o fato da multa por uso da faixa exclusiva do BRT ter gerado uma norma social que desencorajava o seu uso. Kurz e cols. (2014), apenas alterando o fraseado  de uma multa por chegar atrasado para um experimento, relataram a ocorrência de taxas de taxas bastante diferentes de atrasos. Quando a multa era apresentada como uma forma de punição pelo inconveniente causado pelos atrasos, a taxa de atrasos foi de 20%, comparada com 40% de participantes atrasados quando a multa foi introduzida como uma forma de reparar os inconvenientes que os atrasos gerariam.

O segundo aspecto seria a severidade das punições, medidas, no caso de multas, pelo seu valor monetário. A despeito da certeza da punição ser mais determinante que a magnitude da punição na dissuasão de crimes, a magnitude pode comunicar quanto aquele grupo de pessoas dimensiona a severidade da transgressão de norma. Entretanto, o efeito de multas mais altas sobre a percepção da severidade da transgressão parece estar condicionado à quanto se confia na agência punidora. Faz sentido esse resultado: pessoas querem ter certeza de que a agência encarregada da punição seja legítima, confiável (Mulder e cols. 2009) e seus processos justos (Verboon and Van Dijke, 2011) para inferir que o tamanho da multa esteja associado com a severidade da transgressão; caso contrário uma multa alta poderia revelar motivações de vingança ou acerto de contas. A multa pela utilização da faixa exclusiva do BRT é considerada uma infração gravíssima, como foi dito anteriormente. Gravíssima, daquelas que com três ocorrências, o cidadão perde a carteira. Embora não tenha dados objetivos a respeito, acredito que a SMTT Aracaju goze de relativa reputação de justiça, considerando, claro, o baixo nível geral de apreciação que órgãos governamentais têm. E isso pode ajudar para que a multa imposta à infração da exclusividade das faixas do BRT tenha gerado a norma social de que é errado trafegar ali. É bom salientar que esta “norma social” à qual eu me refiro muito provavelmente terá vida curta. Vários condutores em Aracaju responderão à retirada de multa sobre o tráfego nessas áreas de forma diferente: mesmo que achassem moralmente condenável circular ali, a introdução da multa em dinheiro os fez ver esse problema como uma relação custo-benefício e agora, ao se diminuir o custo, vão passar a achar mais vantajoso andar por faixas menos apinhadas (Heyman e Ariely, 2004, discorrem sobre circunstâncias parecidas). Outros condutores, com opiniões menos fortes sobre o tema, podem simplesmente ser guiados pela percepção de que há cada vez mais pessoas circulando nessas faixas e passar a achar mais moralmente aceitável fazer o mesmo, já que todo mundo faz. No final das contas, provavelmente retornaremos aos padrões anteriores de uso das vias de trânsito.

Como incentivar (dissuadir) comportamentos?

O possível surgimento de uma norma social como consequência (não planejada, posso apostar) da implementação de uma política pública para o tráfego em Aracaju nos revela o quão complexa pode ser a tarefa de quem deseja modificar comportamentos em um nível societal. Gneezy, Meier e Rey-Biel (2011) sumarizam avanços nas pesquisas econômicas sobre incentivos e apresentam conclusões nessa linha. Nem sempre incentivos fazem com que as pessoas ajam da forma desejada; nem sempre desincentivos as inibem da forma planejada. Mas esse fenômeno está longe de ser randômico: uma série de variáveis já conhecidas têm papéis cruciais no impacto dos incentivos, assim como uma linha de pesquisa vibrante e interdisciplinar envolvendo Psicologia, Direito, Economia, Antropologia, Sociologia, entre outras, revela novas linhas de ação a cada dia.

Nossos gestores públicos se beneficiariam bastante em conhecer resultados dessas pesquisas. Afinal, grande parte  da atividade de legisladores, municipais, estaduais e federais, é dedicada à criação de sistemas de regras para evocar ou dissuadir certas condutas. Nossa discussão nos revelou que a mera inclusão de multas (ou incentivos) para um determinado comportamento, ignorando uma intrincada rede de normas sociais que se relacionam a ele, pode ser desde ineficiente, gerando resultados aquém do que se esperava, até mesmo contraproducentes, ao fazer com que as pessoas se comportem de forma oposta ao que se esperava.

1. http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/curitiba-e-capital-com-mais-carros-por-pessoa-veja-ranking, acessado 30 de maio de 2016.

2. http://www.economist.com/blogs/freeexchange/2011/07/public-transport, acessado 30 de maio de 2016.

Referências

Heyman, James, and Dan Ariely. 2004. “Effort for Payment: A Tale of Two Markets.” Psychological Science, 15(11): 787–93.

Mulder, L. (2008). “The difference between punishments and rewards in fostering moral concerns in social decision making”. Journal of Experimental Social Psychology, 44, 6, 1436-1443.

Gneezy, U. e Rustichini, A. (2000a). “Pay Enough or Don’t Pay At All.” Quarterly Journal of Economics, 115, 3, 791–810.

Gneezy, U. e Rustichini, A. (2000b). “A Fine Is a Price.” Journal of Legal Studies, 29, 1, 1–18.

Gneezy, U., Meier, S. e Rey-Biel, P. (2011).When and Why Incentives (Don’t) Work to Modify Behavior. Journal of Economic Perspective, 25, 4, 191-210.

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