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A convivência em grupos foi selecionada na medida em que aumenta a probabilidade de sobrevivência do ser humano (LIEBERMAN e EISENBERGER, 2009). Segundo Tucker e Ferson (2008), os seres humanos são organismos sociais que dependem exclusivamente de redes de cooperação e contratos sociais como forma de proteção contra riscos. Dessa forma, os modelos e estudos econômicos mostram que o ser humano tem uma preferência social e esta preferência integra as normas sociais que consistem na preferência por justiça, equidade, confiança em outros e punição para aqueles que violaram as normas sociais (FEHR e FISCHBACHER, 2004; 2007). As normas sociais surgem, portanto, através da interação em grupos e são definidas como comportamentos regularizados pelo grupo, baseados nas crenças de como se deve comportar em determinadas situações. Estas crenças desencadeiam meios informais para o cumprimento das normas sociais. Todos devem fazer cumprir estas normas, mesmo que isso tenha um custo imediato para aquele que impõe o cumprimento delas (nos jogos econômicos, por exemplo, implica em deixar de ganhar dinheiro ao punir quem violou a norma social). Por meio de sanções sociais, é imposto o cumprimento das normas, e os estudos mostram que as pessoas punem mesmo que não tenham ganhos imediatos ou futuros com o comportamento de punir quem violou as normas sociais. (FEHR e GÄCHTER, 2000; BERNHARD, FEHR e FISCHBACHER, 2006).

A punição altruísta é um dos comportamentos evolutivos que surgiu em grandes civilizações por ser mais difícil manter as normas sociais em grandes grupos do que em comunidades menores (MARLOW et al, 2008), que mantêm as normas sociais por meio da punição direta, conhecida como punição de segunda ordem, quando punimos quem nos causou danos, nos feriu. Já a punição de terceira parte é a punição é dada por uma pessoa não envolvida com quem tenha gerado danos ou prejuízos a uma outra pessoa (KRUEGUER e HOFFMAN, 2016). Com o avanço nos estudos comportamentais e da neurociência cognitiva, Hoffman e Krueguer (2016) apontam para o acúmulo de evidências científicas que tornam possível formular um modelo que ajude a compreender o comportamento de punição altruísta, especialmente a punição realizada por uma terceira parte.

No artigo “The Emerging Neuroscience of Third-Party Punishment” os autores apresentam o modelo fundamentado nos estudos da economia experimental e da neurociência cognitiva partindo de que o comportamento de punição altruísta é humanamente universal (BROWN, 1991) e de duas facetas hipotetizadas da punição: a) a punição altruísta realizada por terceiros não envolvidos na situação de violação da norma social seria um mecanismo evolutivo crucial para o desenvolvimento de grandes civilizações por aumentar o nível de cooperação e reciprocidade em grandes grupos, sendo uma extensão evolutiva da punição de segunda parte (FEHR e FISCHBACHER, 2004; MARLOW et al, 2008; KRUEGUER e HOFFMAN, 2016); e b) a intencionalidade de quem violou a norma social, a natureza da violação e o tamanho do prejuízo para a vítima são fatores importantes que baseiam o montante que o indivíduo dispende na punição, ou seja, a consideração automática dessas variáveis leva à atribuição do grau de culpabilidade do outro na sua violação (KRUEGUER e HOFFMAN, 2016).

O aspecto evolutivo do comportamento de punição por agentes não diretamente relacionados com a violação das normas sociais está em dividir o custo da punição com outros não diretamente afetados, o que é crucial para reforçar as normas sociais, uma vez que a punição realizada apenas pelos envolvidos teria altos custos para os que já estariam em prejuízo e não seria suficiente para gerar altos níveis de cooperação e reciprocidade (FEHR e FISCHBACHER, 2004; ZHONG et al, 2016). Contudo, a decisão de como e quanto impor de punição a quem violou a norma social é complexa e depende do contexto. Dessa forma, Hoffman e Krueguer (2016) consideram no modelo a participação de três grandes redes cerebrais envolvidas no julgamento de culpabilidade e na decisão de como e quanto punir: o Sistema de Saliência (SN), o Default Mode Network (DMN – rede modo padrão) e a Rede Executiva Central (Central Executive Network – CEN).

O Sistema de Saliência (SN) processa experiências aversivas para guiar o comportamento, detectando a presença ou a ameaça de violação da norma social, processado pelo Córtex Cingulado Anterior dorsal (dACC), gerando uma resposta aversiva pela violação processada pela Insula Anterior (AI), que gera uma gama de resposta emocional em relação à severidade da violação. Os autores consideram essa reação como a base de todos os três níveis de punição. Ao modular o Default Mode Network (DMN) que irá avaliar o contexto, sendo que o Córtex Pré-Frontal Medial (MPFC), o Córtex Pré-Frontal Ventromedial (vmPFC), o Córtex Pré-Frontal Medial Dorsal (dmPFC) integram o processo emocional e o processamento cognitivo social relacionado à intencionalidade de quem violou a norma e integram ambas as informações gerando a avaliação da culpa. Nesse processo também está incluído o processo de autorreferência realizado pelo Córtex Posterior Parietal (PCC) e a Junção Temporoparietal (TPJ) no processamento de inferência das intenções, crenças e desejos do outro.

Já a convergência do processamento de culpa para uma decisão de punição é realizada pela Rede Executiva Central (CEN), sendo que a escala de punição é processada pelo PPC e a escolha da punição pela Córtex Pré-Frontal dorsolateral (dlPFC), processo esse que permite coordenar entre diferentes representações abstratas disponíveis de diferentes processamentos de fluxos de informações (KRUEGUER e HOFFMAN, 2016). Além disso, outros estudos apontam para a ativação do sistema de recompensa no cérebro no comportamento de punição na terceira pessoa, com maior atividade do núcleo accumbens, o que aponta para outro mecanismo motivador para o comportamento de punição (STROBEL et al, 2011). As figuras abaixo são do artigo de Hoffman e Krueguer (2016) sendo que a Figura 1 (a) representa o enquadramento neuropsicológico do modelo e a Figura 1 (b) representa a rede de larga escala neuronal na punição da terceira parte.

Figura 1 do artigo The Emerging Neuroscience of Third-Party Punishment de Hoffman e Krueguer, publicado na Trends in Neuroscience, 2016.

Na Figura 1 é possível observar a interação do sistema que avalia intenção e culpa em azul, que compõe o DMN com o sistema que avalia o grau do dano causado ao outro pelo SN em vermelho. Em verde, o CEN integra os processamentos dos outros dois sistemas para decidir construindo uma escala de punição e selecionar a punição específica adequada aos fatores de intencionalidade, prejuízo ou dano e culpabilidade ajustando ao contexto da violação ou crime cometido (HOFFMAN and KRUEGUER, 2016).

O modelo neuropsicológico proposto pelos autores é de grande contribuição para a compreensão dos processos básicos envolvidos no julgamento de um ato criminoso, ou da reação de um grupo para aquele que violou a norma social, por exemplo, em que o comportamento de punição pode ser mais guiado por um processo afetivo do sistema de punição de segunda parte do que pelo sistema executivo de terceira parte, em que o DMN daria mais peso para o dano ou prejuízo causado por quem violou as normas do que a avaliação do motivo e da intencionalidade para aquela violação ocorrer. Nesse sentido, o modelo auxilia na compreensão de comportamentos de punição muitas vezes mais severa do que realmente seria adequado se integrasse os fatores de intencionalidade, culpabilidade e fatores contextuais além do dano provocado realizado por juízes ou por um grupo ou por um gestor, por exemplo.

Um exemplo seria a decisão de um gestor em demitir um funcionário por um erro sem intencionalidade, e provocado por um contexto em que este não teria muito controle, devido ao prejuízo gerado pelo erro, ou seja, um peso maior dado pelo DMN pelo prejuízo gerado, levando a uma resposta de punição à violação da norma de confiança acima do que deveria se considerados os outros fatores pelo CEN, o que seria uma resposta de punição de segunda parte. Tais decisões podem ser consideradas injustas para os outros funcionários levando ao sentimento de indignação ou mal-estar pela punição, avaliada como excessiva pelos três sistemas.

A grande relevância dessa fundamentação neurológica está em trazer luz sobre o risco de erro de julgamento e na compreensão de como de fato são processadas as informações no julgamento e na decisão de punição ao compreendermos como culpamos, como convertemos a culpa em punição, e mais adiante, serão  necessárias maiores investigações acerca de como e porque perdoamos, apesar da decisão de punição. Tais refinamentos na compreensão dessa base neurobiológica  possibilitarão desenvolver estratégias para evitar os vieses que geram os erros de julgamento e de punição (seja excessiva ou falta de punição quando deveria ocorrer), bem como possibilitar o desenvolvimento de estratégias mais eficazes na redução de violação das normas sociais por tornar a punição por terceiros mais provável do que de fato ocorre na atualidade.

Referência Bibliográfica

BERNHARD, H, FEHR, E e FISCHBACHER, U. Group Affiliation e Altruistic Norm Enforcement. The American Economic Review, v. 96, n. 2, 2006.

BROWN, D. Human Universals, McGraw-Hil, 1991.

FHER E. e FISCHBACHER. Third-party punishment e social norms. Evolution and Human Behavior, v.25, p. 63-87, 2004.

FEHR E. e CAMERER, CF. Social neuroeconomics: the neural circuity of social preferences. Trends Cognition Social, v. 11, n. 10, p 419-27, 2007.

FEHR, Ernst e GÄCHTER, Simon. Altruistic punishment in humans. Nature, v. 415, 2002.

KRUEGER, Frank; HOFFMAN, Morris. The emerging neuroscience of third-party punishment. Trends in Neurosciences, v. 39, n. 8, p. 499-501, 2016.

MARLOWE, FW et al. More ‘altruistic’ punishment in larger societies, Proc. R. Soc. B,v. 275, p.587– 590, 2008.

LIEBERMAN, M. D.; EISENBERGER, N. I. Pains and Pleasures of Social Life. Science, v. 232, n. February, p. 890–891, 2009.

TUCKER, W. Troy e FERSON, Scott. Evolved Altruism, Strong Reciprocity e Perception of Risk. New York Academy of Sciences, v. 1128, p. 111–120, 2008.

STROBEL, A, ZIMMERMANN, J, SCHMITZ A, REUTER M, LIS S, WIDNDMANN e KIRSCH P. Beyond revenge: Neural e genetic bases of altruistic punishment. NeuroImage , v. 54, p. 671-680, 2011.

ZHONG, Songfa et al. Computational substrates of social norm enforcement by unaffected third parties. NeuroImage, v. 129, p. 95-104, 2016.

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