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Um dos grandes desafios da Economia Comportamental é reunir evidência empírica para testar suas hipóteses de pesquisa. Se é verdade que isso se aplica a todos os campos da ciência e, no caso da Economia, a todas as correntes teóricas e especialidades, esse desafio é particularmente crítico em abordagens que se afastam da teoria tradicional, como é o caso da Economia Comportamental.

Em seu empenho de ampliar o objeto da análise econômica, economistas de renome como Gary Becker construíram um modelo de conduta racional que Dan Ariely (2012) apelidou de SMORC (simple model of rational crime, ou modelo simples de crime racional). Em uma abordagem inovadora, ainda que enraizada na teoria neoclássica, Becker (1968) estendeu essa teoria e seu pressuposto de racionalidade para todos os domínios da ação humana, inclusive o domínio dos comportamentos que afrontam as normas sociais.  Como qualquer conduta econômica, o agente tomaria a decisão de cometer um crime a partir de um cotejo entre meios e fins, baseado nas consequências prováveis de sua ação.

Ora, o fato de supor agentes racionais, maximizadores de seus próprios interesses, que respondem a incentivos econômicos, permite que a teoria econômica conceba modelos matemáticos que geram previsões razoavelmente precisas sobre o comportamento dos agentes. Nesse cenário, embora a evidência empírica seja importante, ela desempenha o papel complementar de verificar o ajuste entre o comportamento teoricamente previsto e aquele observado no mundo real. Já na Economia Comportamental a verificação desse ajuste é ainda mais estratégica, uma vez que tem como objeto de estudo condutas que se afastam da racionalidade em seu sentido estrito. Como a indução é crucial na construção teórica, os pesquisadores da área precisam usar de criatividade para construir instrumentos empíricos que possam detectar e, na medida do possível, quantificar, comportamentos anômalos.

Nos estudos sobre desonestidade conduzidos por economistas comportamentais, desenhos experimentais podem ser úteis para identificar a frequência de fraudes, refletir sobre as circunstâncias presentes em cada caso e, a partir de suas causas prováveis, ajudar no delineamento de políticas de combate à corrupção. Dado isso, meu objetivo aqui é descrever de forma pormenorizada alguns experimentos que me parecem passíveis de aplicação em países como o Brasil, que tem se saído muito bem nos campeonatos internacionais de corrupção.

Em artigo recente divulgado neste site, Muramatsu (2017) se debruça sobre um experimento conduzido por O. Weisel e S. Shalvi (2015), cujo objetivo era verificar a ocorrência de colaboração em atos de desonestidade.

Outro experimento bastante criativo para medir a ocorrência de condutas desonestas é relatado por Dan Ariely (2012) e parte de um conjunto de matrizes numéricas. Para a realização de uma primeira versão desse experimento, Ariely contou com a colaboração de dois colegas acadêmicos, N. Nazar e O. Amir.

Figura 1 – Matrizes numéricas usadas em Ariely et al. (2012)

Os participantes recebiam uma folha com 20 matrizes numéricas diferentes, tal como na Figura 1.Sua tarefa era identificar a ocorrência, nas várias matrizes, de dois números cuja soma fosse 10. Tinham cinco minutos para completar a tarefa, ao fim dos quais deviam relatar para o pesquisador o total de somas 10 que tinham conseguido detectar na folha. Para cada resposta correta, ganhavam uma quantia em dinheiro (variável entre cinquenta centavos de dólar na primeira versão do experimento e dez dólares em versão posterior).

Como calcular a incidência de fraude nessas circunstâncias? Como de praxe, os pesquisadores compararam o desempenho de dois grupos de participantes, o grupo de controle e o grupo experimental ou de tratamento. No grupo de controle, as folhas de resposta eram entregues ao pesquisador no final da sessão,o que permitia, em tese, a conferência do número de respostas certas declarado pelo participante. Estas equivaleram, em média, a 4 por participante. No grupo de tratamento, o indivíduo triturava sua folha de resposta numa picotadora de papel ao sair da sala, sem que seu relato sobre o número de respostas certas pudesse ser conferido pelo pesquisador. Nesse segundo grupo, o número de acertos reportado foi 6. Como seria de se esperar, a impossibilidade de detectar a fraude levou os participantes a mentirem sobre seu desempenho efetivo.

Até aí, o padrão observado está de acordo com a teoria tradicional: as pessoas mentem mais quando não é possível checar a veracidade daquilo que afirmam, portanto, quanto menor o risco de serem pegas “com a boca na botija”.

Um segundo achado significativo no experimento de Ariely, porém, é que essa “margem de mentira” (2 respostas corretas a mais na condição da folha de respostas triturada), é menos elevada do que se poderia esperar de um comportamento maximizador. Por quê? A possibilidade de fiscalização é parte da resposta, mas não explica totalmente o padrão encontrado, como Ariely constatou ao rodar o experimento sob a supervisão de uma pesquisadora cega. A resposta mais plausível é o fato de haver uma margem de tolerância para os desvios em relação a uma conduta honesta que as pessoas tendem a aceitar. Ainda que aproveitem a oportunidade de mentir para aumentar seus ganhos, elas querem preservar sua auto-imagem de pessoas honestas e, para tanto, definem um montante de fraude que consideram eticamente tolerável.[1] A observação desse padrão mostra a superioridade do modelo proposto por Ariely, comparativamente ao SMORC, para descrever o comportamento efetivo dos agentes em condições onde a fraude é possível.

Cabe também registrar que a diferença entre o relatado e o esperado não decorreu de uns poucos participantes do experimento de Ariely terem exagerado seu desempenho – ao contrário, a desonestidade distribuiu-se mais ou menos homogeneamente entre todos os participantes. Em outras palavras, não é a existência de algumas “maçãs podres” na cesta que explica a ocorrência de condutas desonestas ou anti-éticas, mas a alta incidência de pessoas dispostas, de vez em quando e por pequena margem, a tirar partido de oportunidades de ganho ilícito.

Um segundo experimento do mesmo tipo foi desenvolvido por Ariely com base numa figura em que diferentes cores e nomes de cores eram apresentadas aos participantes, que deveriam lê-las em voz alta. Os participantes foram divididos em dois grupos. Ao primeiro grupo foi apresentada uma figura onde os nomes das cores eram corretamente identificados (amarelo grafado em amarelo, vermelho em vermelho, verde em verde e assim por diante). Na figura apresentada ao segundo grupo, porém, o nome da cor não correspondia à cor da fonte utilizada para grafá-lo, cabendo a cada participante dizer em voz alta a cor verdadeira da palavra, e não o que estava escrito. Nessas condições, o segundo grupo demorava três vezes mais para dizer o nome das cores, e isso provocava uma sensação de cansaço.

Na segunda etapa do experimento, os participantes eram submetidos a um teste de múltipla escolha com 50 questões, sendo prevista a remuneração pelo número de acertos. Aqui entrava a armadilha capaz de induzir à fraude: o pesquisador oferecia aos participantes a oportunidade de pegar uma folha que continha as respostas certas, explicando, por exemplo, que as folhas com as respostas em branco tinham se esgotado. O participante devia então decidir se respondia na folha já preenchida e, se esse fosse o caso, se dava suas próprias respostas ou plagiava as respostas encontradas.

O resultado foi que os participantes que haviam anteriormente passado pela tarefa mais cansativa cediam mais facilmente à tentação, incorrendo no plágio com mais frequência do que os que haviam desempenhado a tarefa mais fácil. Esse padrão (“cansados demais para dizer a verdade”) é bem analisado por Mead e outros (2009).

Ariely (2012) também concebeu alguns experimentos naturais, um dos quais relatarei aqui. Com a ajuda de N. Mazar, colocou em um dormitório estudantil uma máquina de vender doces, ao preço unitário de 75 centavos de dólar. Do lado de fora da máquina havia um telefone que podia ser acionado caso fosse constatado algum problema em seu funcionamento. Embora o preço estivesse afixado na frente da máquina, na prática, quando o indivíduo inseria o dinheiro e apertava a tecla correspondente ao doce que queria, a máquina entregava o doce e ao mesmo tempo devolvia o dinheiro.

Como reagiam as pessoas quando o dinheiro lhes era devolvido junto com o doce? Ariely não chega a apresentar os resultados desse experimento, mas comenta que, quando isso ocorria pela primeira vez, várias pessoas acionavam a máquina novamente para saber se o dinheiro seria devolvido, o que, de fato, ocorria. Algumas pessoas tentavam ainda uma terceira vez, embolsando seu dinheiro de volta e os três doces, mas nenhuma delas foi mais longe do que isso, o que reafirma a existência de uma margem relativamente pequena de fraude.

Outro padrão observado pelos pesquisadores é que mais de metade das pessoas olhava à sua volta para ver se havia algum amigo no corredor e, caso houvesse, convidava esse amigo a repetir a experiência. A interpretação mais plausível dessa conduta é que o fato do amigo também beneficiar-se do engano ajudava a mitigar o desconforto do indivíduo por não ter efetivamente pago o doce e o possível dano a sua auto-imagem. Corruptor e corrompido sentiam-se agora irmanados em sua pequena desonestidade.

Há vários outros achados interessantes no relato de Ariely, alguns bastante condizentes com o senso comum, outros mais surpreendentes. Relaciono abaixo alguns deles:

1)      a força de vontade com a qual controlamos nossa propensão à fraude diminui com o cansaço;

2)       lembrar o código de ética de nossa universidade ou de nossa profissão nos torna mais honestos;

3)      nossa inclinação a retribuir favores pode deixar-nos em situação moralmente vulnerável;

4)      usar óculos escuros de marca falsificados nos torna mais predispostos a mentir;

5)      a frequência de funerais de avós de estudantes aumenta em datas de prova ou de entrega de trabalhos escolares;

6)      pessoas mais criativas são mais propensas a mentir;

7)      a mentira se propaga como um vírus quando os participantes de um experimento testemunham um participante que mente sobre seu desempenho e sai impune.

O que quero destacar neste artigo não é a interpretação que os pesquisadores deram aos padrões de comportamento empiricamente observados, mas a arquitetura dos instrumentos de coleta de dados utilizados para medir desonestidade.

Vários outros formatos dos experimentos relatados acima foram testados, com o intuito de controlar variáveis que poderiam determinar diferenças significativas nos comportamentos observados.

Nas pesquisas de Ariely com as matrizes numéricas, o autor e seus colaboradores promoveram mudanças na forma de remunerar os participantes: em alguns grupos, o indivíduo do grupo experimental podia sacar diretamente o dinheiro correspondente ao número de respostas certas que relatava, sem que o pesquisador conferisse. Em outra versão do experimento, os pesquisadores compararam a propensão à fraude quando o participante era remunerado em dinheiro vivo e quando era remunerado com vales, sendo que neste último caso as fraudes eram mais numerosas. Em uma terceira versão ainda os participantes registravam o número de suas respostas corretas em um formulário bastante parecido com o formulário de imposto de renda, circunstância que os levou a mentir com mais frequência.

É claro que os experimentos aqui relatados não se prestam a identificar individualmente as pessoas que agem de forma desonesta. É claro também que, embora houvesse alguma variação nas remunerações dos vários experimentos, elas se mantiveram necessariamente reduzidas, o que significa que não é possível estimar com precisão o que o ocorreria caso fossem tão bilionárias quanto os casos de corrupção que vêm sendo diariamente denunciados pela mídia. Mesmo assim, os testes realizados ajudam a medir em que circunstâncias se pode esperar a ocorrência de comportamentos desonestos, sua intensidade e possíveis fontes. Ajudam, assim, a orientar políticas destinadas a prevenir e coibir graus mais extremos de desonestidade.

A construção de experimentos de baixo custo, cujo grau de dificuldade seja compatível com o perfil dos participantes e que sejam capazes de revelar padrões de comportamento significativos, em diferentes cenários e culturas, não é trivial. Os economistas comportamentais enfrentam esse desafio e a experiência internacional nessa área pode ser um ponto de partida conveniente para a concepção de formatos experimentais adequados. No Brasil, onde o diagnóstico dos comportamentos desonestos é crucial para a definição de políticas públicas, os pesquisadores deveriam contar com o financiamento necessário para adaptar os experimentos descritos às condições locais, aprofundando o conhecimento de um fenômeno tão difundido e tão problemático.

Referências

G. Becker, “Crime and punishment: an economic approach”. Journal of Post Keynesian Economics, vol. 76, n. 2, pp. 169-217.

A. M. Bianchi, “Imunidade ética”. http://www.economiacomportamental.org/nacionais/imunidade-etica/, 8/6/2016.

D. Ariely, The (honest) truth about dishonesty. HarperCollins Publishers, 2012.

N. L. Mead, R. F. Baumeister, F. Gino, M. E. Schweitzer e D. Ariely, “Too tired to tell the truth: self-control resource depletion and dishonesty”. Journal of Experimental Social Psychology, 2009.

R. Muramatsu, “Corrupção: algumas lições da economia comportamental”. www.economia comportamental.org, 2/5/2017.

O. Weisel e S. Shalvi, ”As raízes colaborativas da corrupção”. 2015. Disponível em http://www.pnas.org/content/112/34/10651.full.


 

[1] Como discuti em artigo anterior, dois mecanismos frequentemente utilizados para conseguir isso são a diluição da responsabilidade e a exploração da incerteza (Bianchi 2016).

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