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O sentido do termo competição na literatura de Microeconomia e Organização Industrial é a questão central para o entendimento da natureza dos mercados, sendo que ele se aplica tanto a mercados com muitas firmas tanto quanto com poucas. Esta centralidade da questão em Economia está longe de ser exclusiva da área, pois permeia estudos em Psicologia, Ciências Políticas, Biologia, dentre outras. Entretanto, apesar da importância do tema, algumas imprecisões são recorrentes quando se busca saber o significado do termo competição.

Partindo da forma mais geral de se definir o termo, competição ocorre sempre que duas ou mais partes disputam algo que todos não podem obter, geralmente denotando rivalidade. Mais especificamente, competição pelas firmas não seria um objetivo, e sim um meio de organizar a atividade econômica para alcançar o objetivo de prover bens e serviços de forma habilidosa e barata [1]. Com estes conceitos em vista, um sentimento comum de se verificar é que competição é desejável por motivar os indivíduos a trabalharem mais arduamente e obterem melhores resultados. Mas, apesar de convincentemente estabelecida a princípio, é um bom exercício crítico questionar frases que impliquem em uma concordância automática a priori, como esta última.

Então vamos ao exercício. Tirole [2] já indicava que tudo o que torna uma firma estrategicamente saudável também pode ser objeto de redução de competição. Refletindo sobre isso, podemos pensar que há uma ambiguidade nas ações competitivas das firmas no mercado, no sentido das motivações e efeitos não facilmente observáveis que esta competição gera. Por exemplo, certas firmas podem, na busca pela redução de seus custos, realizar contratos de integração vertical que impeçam seus concorrentes a terem acesso a insumos fundamentais. A primeira motivação, de redução de custos é louvável. Mas a segunda, de caráter mais implícito, nem tanto. Outro exemplo se dá quando elas fazem redes de lideranças inovadoras de mercado e simultaneamente impedem a entrada ou induzem a saída do mercado de firmas com igual capacidade de inovação. Em resumo, elas podem então escolher um sem número de comportamentos ambíguos que, na falta de transparência das atuações, são entendidos pela face publicável dos resultados ditos como movidos pela competição.

Em Martin [3] é possível ver como um conceito aparentemente tão conhecido é passível de interpretações nada unificadoras, de certa forma, pela própria natureza ambígua da atividade competitiva descrita acima. O que resumidamente se observa é que a literatura indica que competição reúne características de rivalidade, mobilidade, seletividade e ausência de poder de mercado. Tais características podem ser classificadas dentro de um grupo relacionado com o processo de alcance de melhores resultados relativos (ações ex ante ou durante). Mas como classificar competição quando se observa os efeitos deletérios ex post ao eventual sucesso de desempenho alcançado na interação entre os agentes?

Um experimento realizado por Schurr e Ritov [4] traz insights importantes sobre a propensão a comportamentos contrários ao bem comum, preenchendo este gap no entendimento das decisões dos agentes após terminar a competição. A observação deste padrão pode ajudar a entender porque agentes decisores na Economia escolhem se comportar desonestamente quando já são empresas dominantes em seus mercados [5]. Ou ainda ajudar a entender como competição desregrada carrega a referida ambiguidade nas ações das firmas.

Buscando identificar quem é mais provável de engajar em comportamentos antiéticos, se ganhadores ou perdedores, Schurr e Ritov primeiro classificaram o conceito de competição lembrando seu caráter relativo. Ou seja, os resultados são determinados pelo ordenamento de um competidor relativo aos outros competidores, o que desencadeia comparações sociais. Por sua vez, tais comparações podem resultar em dois efeitos contrastantes: por um lado, porque os perdedores têm acesso a menos recursos do que os ganhadores, eles podem ser motivados a usarem comportamentos contrários ao bem comum para garantirem seus recursos; por outro lado, pode-se esperar que o aumento da proeminência da comparação social em competição irá evidenciar o sentido de apoderamento entre ganhadores, o que facilita comportamento desonesto. Este último raciocínio foi o que motivou os autores a investigarem se ganhadores ao invés de perdedores são mais inclinados a se comportar desonestamente.

Como as firmas são geridas por pessoas, nada mais lógico do que entender o efeito do apoderamento psicológico sobre a ética das decisões subjacentes às estas mesmas firmas. Schurr e Ritov pontuam primeiro que o apoderamento psicológico como um sentimento de maior merecimento de tratamento preferencial relativo às outras pessoas, principalmente quando fazem algo errado. E, segundo, que pessoas frequentemente se comportam desonestamente desde que não violem a percepção de si mesmas como desonestas ou desde que possam justificar suas ações. Unindo as duas coisas, o efeito é que a apoderamento pode mediar a relação entre auto imagem e desonestidade, porque ele provê a justificativa moral para engajar em um comportamento moralmente inaceitável.  Um exemplo dentro desta linha é o indivíduo apoderado que recategoriza roubo como uma requisição para si do que tem por merecimento, de forma a abrir um caminho para uma ação desonesta.

Os autores ainda descrevem outra razão para ganhadores serem mais inclinados a comportamentos desonestos, dada pelo efeito de status social. Isto porque quanto maior o status advindo do ranqueamento de riqueza, prestígio ocupacional e educação na sociedade, maior o apoderamento e menor o comportamento pro social.

Assim, a partir deste raciocínio, Schurr e Ritov fazem um experimento para testar a hipótese de que ganhar uma competição implica numa tendência em torno de comportamento desonesto. Os resultados advieram de quatro estudos para medir desonestidade, dada a tarefa dos participantes de revelarem o número resultante de dois dados (dice-under-a-cup task) em função dos quais eles recebem um pagamento. Isto com o detalhe de que somente o participante pode ver o resultado, o que deu aos pesquisadores a possibilidade de medirem comportamento desonesto no nível agregado.  O que os autores constataram foi que ganhar de um rival gera posterior desonestidade, dentro da hipótese descrita anteriormente de que o senso de apoderamento implica neste comportamento. E, quando sucesso é medido por comparações sociais, como é o caso de ganhar uma competição, desonestidade aumenta.

Voltando então com estes insights para as decisões das firmas e de seus administradores no mercado, será que ganhar uma competição e obter liderança permanente no tempo explicaria os comportamentos desonestos nos moldes que estamos observando hoje, por exemplo, entre as grandes empreiteiras brasileiras? Assumindo que sim, como isto poderia ser modelado estrategicamente, dado que parte considerável destas empresas não tomam decisões unilaterais?

Uma possibilidade de capturar este processo decisório seria considerar duas firmas decidindo sobre iniciativas de investimento estratégico bem sucedido ou de não investimento (I ou NI), num jogo sequencial com informação imperfeita, em que a firma que se move depois não observa comportamento desonesto bem sucedido (D) ou honesto (H) da rival líder de mercado (já ganhadora no mercado). Quando i realiza as decisões de investimento, se depara com um dilema de agir ou não desonestamente para manter ou ampliar sua participação de mercado (e o empresário desta firma, em contrapartida, seu status quo na sociedade). Vendo então este jogo, onde os payoffs foram construídos para captar as preferências típicas da situação, como descrito a seguir.

Da análise das melhores respostas conjuntas para as duas firmas neste jogo sequencial, o único Equilíbrio encontrado seria dado pela empresa i investir e ser desonesta e a firma j não investir; e se a firma i não investisse, a melhor resposta de j seria investir, não importando o comportamento de i [6]. Então neste caso uma empresa dominante teria vantagem de se comportar desonestamente porque isto a manteria líder de mercado e sua ação de dominância estaria justificada por sua eficiência produtiva.

Enfim, talvez no futuro seja possível encontrar uma unificação para o significado de competição desejável a partir dos insights advindos da economia comportamental, que traduza um resultado em que o ótimo social seja alcançado: competição ocorre quando cada jogador extrai o melhor de suas possibilidades e o resultado final beneficia a todos. Como o avanço tem que se dar primeiro no comportamento humano em si e não na Teoria, então vale obter dela por enquanto uma contribuição no sentido de perceber as interligações entre decisões e motivações não puramente econômicas para ao menos ser possível detectar onde pode-se avançar. Em outros termos, para que se possa garantir que competição traga em sua essência o sentido de bem comum, pode ser novos aspectos comportamentais dos processos decisórios entre firmas sejam capazes de conduzir melhor os estudos e as políticas em defesa da concorrência nos mercados.


[1] Stigler, G. J. Competition. The New Palgrave Dictionary of Economics, Second Edition, 2008.

_________. The Organization of Industry. Chicago: The University of Chicago Press, 1968.

[2] Tirole, J. The Theory of Industrial Organization. The Mit Press. 1995.

[3] Martin, S. Globalization and the natural limits of competition, in: Neumann, M.; Weigand, J. (Orgs.), The International Handbook of Competition, Edward Elgar 2004, S. 16-64.

[4] Schurr, A.; Ritov, I. Winning a competition predicts dishonest behavior. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS), vol. 113, n. 7. February, 2016.

[5] Ver por exemplo, os mais recentes escândalos financeiros e contábeis de grandes empresas mundiais.

[6] Equilíbrio de Nash Perfeito de Subjogos, dado por (I, D; NI no caminho de equilíbrio e estratégia dominante I para ações D e H fora do caminho de equilíbrio, com payoffs iguais a (60, 0).

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