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O tema da corrupção e desonestidade tem aparecido com alguma frequência nas contribuições a esse site. Fácil trazer aqui alguns exemplos. Em julho de 2017, a profa. Ana Maria Bianchi publicou um excelente ensaio “Como medir Desonestidade”[1], comentando sobre alguns avanços da Economia Comportamental nesse sentido. Citou o livro de Dan Ariely “The (honest) truth about dishonesty” (2012), que propõe que as pessoas tendem a apresentar uma “margem de honestidade”. Isso permite que elas se beneficiem de pequenas “fraudes” cotidianas, mas ainda mantenham uma autoimagem de alguém íntegro, digno de confiança. Em seguida, conta sobre alguns dos conceitos e métodos usados para entender tal fenômeno.

Bianchi citou ainda outra contribuição ao site, dessa vez da Profa. Roberta Muramatsu: “Corrupção: algumas lições da Economia Comportamental”[2]. Esse texto fala sobre um experimento que permite investigar as situações nas quais as pessoas teriam maior ou melhor probabilidade de agirem desonestamente.  Aliás, o ensaio de Bianchi, também oferece outros exemplos de procedimentos experimentais que podem ser usados para isso. Os resultados desses experimentos têm sido bastante consistentes em replicar a tal “margem de honestidade” e oferecem insigths importantes sobre como comportamentos desonestos ocorrem em nível individual.

Desonestidade corporativa

Não são apenas os indivíduos, um-a-um, que apresentam tais padrões desonestos, certo?  As notícias estão repletas de exemplos nos quais fraudes e desonestidades foram cometidas não por indivíduos, mas por corporações! Um caso famoso na história corporativa foi o da construtora Enron, que foi pega mentido declaradamente e por anos a fio a seus acionistas, clientes e fornecedores. Seus livros contábeis eram completas obras de ficção. Mas, eram endossados por firmas de auditoria “respeitáveis” como a (hoje falida) Arthur Andersen, que por 12 anos atestou a “veracidade” dessas informações. Casos de desonestidade corporativa também não faltaram nas múltiplas crises financeiras das últimas décadas.

A gravidade da desonestidade corporativa se amplia pelo fato de que tais instituições não são formadas por indivíduos necessariamente desonestos. Pelo contrário, muitos de seus funcionários são pessoas honestas, que realizavam seu trabalho diário em completa coerência com as normas de sua instituição. Seria mais fácil pensar que as corporações desonestas são compostas apenas por pessoas desonestas, certo?  Eventos comportamentais nunca são simples assim.

O que uma instituição deve fazer para obter a confiança da população?

Recentemente eu tenho estado particularmente interessada na pergunta acima.  Acho que nem precisa explicar sua relevância em meio a um cenário de corrupção e perda de confiança generalizada da população junto às instituições governamentais e corporativas.

Faço aqui uma sugestão ao leitor. Pare nesse exato momento de ler e tente responder essa pergunta.  Pronto? Vá!

Se quiser uma dica, traga à mente uma instituição pública que você confie e identifique quais as práticas que a tornaram dignas de sua confiança.  Ajudou?…

Note a facilidade ou dificuldade que você teve ao formular uma resposta.  Em tese, essa deveria ser uma resposta fácil, certo? Bastaria recordar-se de um exemplo prático, uma empresa em que você confia, e se auto-examinar, listando os fatores que geraram sua confiança. Espero sinceramente que o leitor tenha tido mais facilidade do que eu nesse exercício.

Desde o princípio…?!

Apesar de não ser historiadora profissional, tenho uma curiosidade insaciável por História.  O algoritmo da Netflix já captou essa tendência e praticamente todas as sugestões que recebo são de documentários e séries históricas. Então, vou falar sobre o assunto admitindo de saída que sou uma mera amadora. Por outro lado, sou diplomada como economista e psicóloga, então nesses temas eu talvez encontre um chão mais firme para oferecer pontos de vista.

Quando estou em uma roda de amigos discutindo sobre corrupção e mentiras institucionalizadas, é quase inevitável que a conversa em algum momento se desvie para um saudosismo vazio.  Comentários sobre uns tais “bons tempos” em que esse tipo de coisa não acontecia e esperanças quanto ao retorno a esse tal momento em que as pessoas eram felizes e não sabiam.

Nessas horas vem à tona a historiadora amadora. Recordo o que li sobre o Brasil colônia, incluindo o imperdível “Mauá, empresário do império” de Jorge Caldeira (Companhia das Letras) e a trilogia de Laurentino Gomes: 1808 (Livro 1), 1822 (Livro 2) e 1889 (Livro 3). Penso em seguida nos dois volumes do Diário Pessoal de Getúlio Vargas, publicados pela Siciliano. Complementando, recordo os cinco livros de Elio Gaspari sobre a Ditadura Militar (Companhia das Letras), dentre tantos, tantos outros.

Faço menção honrosa à série dirigida por José Padilha e exibida pela Netflix, “O Mecanismo”.  Apesar de acusações trocadas entre camisas vermelhas e verde-amarelas, minha opinião é de que a mensagem central dessa série é de que o “mecanismo” que move eventos político-econômico no Brasil independe de seus protagonistas. Se tornou algo “sem rosto”, alimentado por todo brasileiro que oferecer uma caixinha para o guarda rodoviário ou para um funcionário priorizar o seu caso em detrimento dos outros na fila.

Todos esses momentos históricos têm ao fundo uma lógica do tipo: “Para meus amigos, o mundo! Para meus inimigos, a Lei!” ou tantas situações em que as pessoas agem sem questionamento apenas porque “É assim que se faz por aqui”.

Dessensibilização generalizada

Tenho plena convicção de que um país democrático depende de uma imprensa livre, com plenos poderes para investigar e denunciar casos e corrupção, desvios ou maus usos de dinheiro público e seus desdobramentos. Também defendo o direito à defesa de opiniões e trocas de ideias, mesmo quando não concordo com tais ideias. Mas, após sermos expostos a décadas e mais décadas de denúncias sem nenhum desdobramento, que terminam “em pizza” e se afundam em um mar de novos casos de corrupção, entra em vigor a psicóloga comportamental. Ela reflete sobre o quanto a exposição contínua a eventos aversivos, repugnantes, tendem a dessensibilizar os indivíduos.

Se histórias de corrupção não investigadas ou punidas se tornam lugar comum, perdemos a referência quanto ao que seria comportamento ético e moral. Para piorar, a ausência de reações de repulsa ou figuras públicas éticas aumenta a probabilidade de nós também passarmos a contribuir ao tal “mecanismo”, como forma de nos integrarmos à sociedade.

Caça ao dedo-duro!

Uma prática social comum (mas nem sempre dita) é a repulsa contra aquela pessoa que denuncia. Há um termo para isso: “dedo-duro”. Um indivíduo que denuncie condutas desonestas dentro da instituição em que trabalha fica imediatamente exposto a uma cascata de reprovações de colegas, corre risco de perder o emprego ou ser repreendido por amigos e familiares. Ao enfocarmos e reprovarmos o dedo-duro, a contravenção em si fica no fundo, desfocada.

Se existe um frio consolo em tal estado de coisas é que a repulsa aos “dedos-duros” (whistleblowers) e a falta de referência quanto ao que seja comportamento ético institucional existe também em outros países. Vide a crise financeira de 2008-2009, resultado de uma propagada cultura de bancos em seguir apenas o que está escrito na lei, sem preocupação sobre a moralidade ou efeitos de longo prazo de produtos financeiros. Não faltaram denúncias sobre o que estava acontecendo, mas ninguém queria escutar. A “recompensa” de muitos whistleblowers foi a perda do emprego e o rótulo de baderneiro ou incompetente.

Afinal… “O que torna uma instituição digna de confiança?”

O Banking Standards Board (BSB) é uma instituição inglesa formada após essa crise e com o objetivo de prevenir sua repetição. O BSB realizou uma rodada de debates com figuras-chave da sociedade britânica e publicou um documento em 2017[3]. Nele, pessoas responderam por escrito à mesma pergunta: “O que torna uma instituição merecedora de confiança?”.

Segue um resumo de alguns pontos levantados pelos respondentes à enquete do BSB. Foram mais de trinta, então não haveria espaço aqui para expor todos. Optei por resumir apenas os quatro primeiros e convido aqueles que se inspirarem pela leitura dos resumos a lerem os textos originais. Também tomei a liberdade de marcar em negrito os pontos que eu julguei mais centrais, segundo minha própria lógica e interesses.

Antes de prosseguir, faço uma sugestão.  Ao lerem os argumentos, pensem que eles não se aplicam apenas ao caso do sistema financeiro.  Pelo contrário, generalizem esses pontos para pensar na conduta de outras instituições civis, como governos federais, estaduais ou municipais, fundações, universidades, hospitais, ou mesmo a administração de seu condomínio.

Profa. Onora O’Neill

Bancos (como outras instituições) são protegidos por uma responsabilidade limitada.  Em outros tempos, todo o patrimônio de um indivíduo empreendedor, no caso, um banqueiro, estaria sob risco e poderia ser perdidos caso sua empresa financeira falisse. Hoje, a sociedade civil protege os banqueiros do impacto da falência ao permitir que, nessas situações, sejam perdidos apenas os bens que são patrimônio da instituição. Fortunas pessoais não são dadas em garantia direta (apesar de poderem ser afetadas indiretamente) das dívidas assumidas pelos bancos. Isso se aplica mesmo a casos em que a falência da instituição tenha sido causada pelas ações de seus detentores e causem grandes danos à sociedade.

Em troca dessas proteções, bancos têm uma responsabilidade junto ao público, de seguir as leis e regulamentações civis. Esse compromisso assume que os bancos não irão lavar as mãos e deixar a cargo de seus clientes entenderem a complexidade e riscos dos produtos que eles estão contratando.

Uma transação financeira entre uma instituição bancária e clientes pessoa física tem uma clara assimetria de informações e de capacidade.  Bancos tem infinitamente mais informações sobre seus produtos e o mercado em geral do que seus clientes. Eles não podem tomar vantagem dessa assimetria e “empurrar” produtos e serviços complexos, arriscados, desvantajosos e/ou desnecessários. Na relação assimétrica entre bancos e clientes, cabe aos primeiros a responsabilidade de instruir o segundo grupo quanto aos produtos contratados. Em linguagem e formatos que garantam que essa compreensão de fato ocorra. Isso é muito diferente de entregar um contrato de várias páginas, em linguagem técnica e letras minúsculas e lavar as mãos. Essa é a contrapartida que bancos devem oferecer em troca da proteção civil da qual gozam.

Allison Cottrell (Executivo-chefe do BSB)

“Garantir que no final do dia você não será indiciado não é uma meta ética aceitável”. O atendimento às regulamentações e leis é, sem dúvida, responsabilidade crucial de todo banco e sociedade. Uma cultura na qual tudo o que não é explicitamente proibido é permitido, não é uma cultura na qual as pessoas deveriam aceitar viver. Nenhuma legislação ou regulamentação, não importa o quão ampla seja, será capaz de ditar antecipadamente as decisões de cada funcionário do sistema bancário, muito menos estar atualizada quanto a todos os avanços tecnológicos ou se antecipar à inventividade humana.

Uma firma será merecedora de confiança se todos os seus membros assumirem a responsabilidade de não apenas atender às regulamentações, mas também servir seus clientes com honestidade, consistência e competência.

O cumprimento das regras e leis deve ser o “piso mínimo” de conduta, nunca o “teto máximo”. Isso exige, obviamente, clara atribuição de responsabilidade, gerenciamento competente de risco e consequências claras para malfeitos. Isso também exige a) funcionários capazes e propensos a exercerem julgamentos profissionais, b) processos internos que alinhem reconhecimento e recompensa àqueles que aderirem aos valores morais da empresa e c) uma cultura corporativa na qual erros são remediados e servem de aprendizado, em lugar de serem ignorados ou tratados como uma caça a culpados.

Michael Held, Banco Federal de Nova York

Cultura envolve um conjunto de normas que gradualmente passam a ser compartilhadas por um grupo de pessoas ao longo do tempo. Muitas delas não estão escritas ou sequer não comunicadas pela fala. Regras culturais são transmitidas por meio de comportamento. Ao observar outros, descobrimos o que é importante para o grupo. Detectamos a diferença entre o que é “certo” ou “errado”, entre o que gera “sucesso” ou “insucesso”. Às vezes, a tendência humana básica de pertencer a um grupo vai longe demais. Leva resulta em aderência cega às práticas existentes e à falta de questionamento.

Essa prática se propaga na relação entre banqueiros e seus advogados ou contadores. Quando um funcionário questiona um advogado da firma, surgem perguntas como  “eu posso fazer isso e ainda estar dentro das leis?” ou “o quão próximo eu posso estar do limite das leis, mas ainda estar dentro dele?” ou “não me diga o que eu deveria fazer, apenas se isso é permitido ou ilegal”.

Advogados, contadores, auditores, analistas de crédito e outras profissões tem um papel social importante de servir como monitoradores independentes, terceiros observadores das atividades financeiras. Mas, muitos estão submersos em relações previamente estabelecidas com seus clientes que envolvem perguntas como as acima e ausência de questionamentos de cunho ético e moral. Tais profissionais devem informar seus clientes não apenas como eles podem fazer algo dentro da lei. Eles também devem aconselhar seus clientes se eles DEVEM fazer isso, levando em conta os interesses das partes afetadas e menos informadas (clientes).

David Roberts, presidente da Nationwide Building Society

Confiança é o coração pulsante do Sistema financeiro. Logo, é uma tragédia que uma indústria tão dependente da confiança do público detenha tão pouca credibilidade. Infelizmente não estamos sozinhos nisso. Recentemente, o Edelman Trust Barometer[4] registrou um declínio simultâneo na confiança das populações quanto aos quatro principais conjuntos de instituições de uma sociedade: governos, corporações, mídia e entidades sem fins lucrativos.

Hoje em dia é banal acreditar que instituições financeiras não existem em prol do bem comum da sociedade, mas apenas para beneficiar uma pequena elite, que seria imune à censura ou à Justiça quando as coisas dão errado. A despeito disso, serviços financeiros são parte vital de nossa Economia, capazes de melhorar a qualidade de vida social e o bem-estar de indivíduos e países. A revolução digital tem mudado drasticamente o modelo de negócio dessa indústria e sua competitividade. Isso tem o potencial de propiciar uma reconquista da confiança de seus participantes.

Na essência, toda pessoa jurídica nasce para cumprir alguma finalidade social, não apenas comercial. É importante que a sociedade se mantenha ciente disso e exija sempre o alinhamento entre tais propósitos e os serviços oferecidos. Organismos e iniciativas independentes devem manter um constante escrutínio quanto a esse alinhamento, e trabalhar em conjunto com seus líderes nesse sentido.

A reconquista da confiança do público começa e termina com líderes e funcionários das firmas assumindo um compromisso de fazer valer a missão e valores de sua organização. Tais valores não podem ser meras palavras penduradas na parede. Eles precisam consistir em uma clara declaração sobre o que a sociedade pode esperar da firma e quais critérios decisórios serão usados em sua execução. Em outras palavras, tornar claro e público qual é a bússola que move a corporação.

A reparação da confiança no setor financeiro não poderá ser alcançada apenas seguindo regras e leis, mas, em última instância, pela coerência entre sua missão, cultura e suas ações práticas. Isso é o que tornará a indústria financeira merecedora de respeito social.

Comentário final

Fico aliviada em saber dos importantes avanços que a Economia Comportamental tem feito na investigação dos determinantes dos comportamentos individuais de mentir. Temos também que considerar que nós, humanos, somos profundamente seres sociais.

Desenvolver estudos experimentais e análises conceituais sobre como práticas sociais induzem membros de grandes grupos a realizarem comportamentos fraudulentos, antiéticos, imorais ou amorais é uma peça essencial ao tema.

Na confecção desse ensaio, tive a felicidade de contar com a revisão de um colega parecerista, como é prática editorial comum nas publicações do site.  Essa pessoa trouxe o exemplo de uma recente regulamentação da Febraban – Federação Brasileira dos Bancos – voltada a aumentar a transparência das informações sobre os (exorbitantes) juros cobrados nos cheques especiais[5].  Isso incluiria alertas de que o cheque especial deve ser usado apenas em emergências e não se integrar à rotina mensal. Aqueles clientes que usarem até 15% do limite passarão a pagar juros mais baixos.

Regras como essa demonstram uma intenção benéfica dessa instituição – que representa a categoria dos bancos – em fomentar uma relação de longo prazo mais saudável entre bancos e clientes.  Ao saber disso, refleti que a introdução dessa linha “divisória” no uso do cheque especial recompensa aqueles que usarem o limite de crédito mais comedidamente (menos de 15%). Isso pode introduzir uma barreira psicológica “light”, que distingue entre usar apenas um pouco do crédito disponível e usar todo o limite, sem proibir decisões nos clientes.  Quem sabe isso não se tornará um “caso” curioso a ser acompanhado do ponto de vista comportamental, especialmente se considerarmos que ela derivou de uma iniciativa dos próprios bancos e não uma legislação governamental externa como o Banco Central.  Regras e leis são necessárias, mas não suficientes.

Torço para que tópicos como a postura ética e moral de instituições também se tornem mais e mais frequentes dentro de nossa literatura experimental e comportamental. Pretendo estar muito atenta a esse tema.

[1] http://www.economiacomportamental.org/nacionais/como-medir-desonestidade/

[2] http://www.economiacomportamental.org/nacionais/corrupcao-algumas-licoes-da-economia-comportamental/

[3] https://www.bankingstandardsboard.org.uk/worthy-of-trust-law-ethics-and-culture-in-banking/

[4] Edelman Trust Barometer (https://www.edelman.com/trust-barometer ) é uma iniciativa que vale a pena conhecer. Reúne um conjunto gigantesco de “surveys” para medir o nível de confiança da população em diversos países, em relação a múltiplos temas e empresas: imprensa, governos, bancos, marketing etc.  Infelizmente, eles não incluem ainda o Brasil ente os países pesquisados, mas vale a pena ler o relatório mais recente sobre a população de países como Inglaterra, Estados Unidos, Singapura, Canadá, Itália, ente muitos outros: https://cms.edelman.com/sites/default/files/2018-01/2018%20Edelman%20Trust%20Barometer%20Global%20Report.pdf

[5] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2018/04/10/febraban-nova-regra-do-cheque-especial-deve-acelerar-queda-do-juro-ao-consumidor.htm

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